sábado, 9 de dezembro de 2017

PARMÊNIDES E AS TORRES GÊMEAS

PARMÊNIDES E AS TORRES GÊMEAS





Algum tempo após os atentados que resultaram na destruição das torres gêmeas, em 11 de setembro de 2001, um filósofo norte-americano esteve no Brasil proferindo palestra, quando abordou o ocorrido sob o ponto de vista do trauma que o fato provocou na sociedade norte-americana. Fazendo um paralelo com os traumas ocorridos na vida individual das pessoas, o filósofo tentou vislumbrar como seria a superação desse trauma.

O raciocínio do filósofo está correto, pois quando tentamos adquirir “ciência” sobre algo, de modo a que venhamos mesmo a antever o futuro, nós o fazemos estabelecendo paralelos entre fenômenos similares. E o individual é claro que tem similaridade com o coletivo. Porém, sempre existem muitos modos de fazer esta comparação, e esses modos são justamente o que faz uma ciência ser pertinente ou não, ou uma filosofia ser algo que tenha um fundamento mais duradouro, ou compreenda apenas superficialmente a questão, não nos trazendo um esclarecimento adequado do problema. Neste caso, a filosofia que podemos fazer algumas vezes se assemelha àquela que fazemos no “boteco”, para acompanhar aquele chopinho gelado.

Segundo o raciocínio desenvolvido pelo filósofo norte-americano, haveria um tempo necessário para que o trauma fosse superado, pois é isso que vemos quando olhamos para a ocorrência de traumas em nossas vidas individuais. É verdade, mas ocorre que às vezes nós não os superamos, apesar de passar o tempo, e pode ocorrer mesmo que venhamos a morrer sem superá-los. O que ocorre é que, para superar um trauma, no mais das vezes nós devemos ter condições de compreender o que está em jogo, caso contrário ele continuará lá em nossa frente, a obstaculizar o caminho. Ou seja, um evento traumático, tanto em nossas vidas individuais como em relação ao coletivo, trás em si uma mensagem, que deve ser decifrada se queremos superá-lo em toda a sua potencialidade evolutiva e transformadora. No caso do atentado de 11 de setembro, o modo como aconteceu, e a influência que teve no mundo, deve nos mostrar que o evento é algo que devemos olhar com mais cuidado. É como se o abstrato nos tivesse mandado um sinal, um sinal que já nos mandou, no passado, mas não compreendemos. Então, em 11 de setembro de 2001, ele veio para dentro de nossa vida de modo mais enfático: decifra-me ou devoro-te! Pois quando aquelas torres foram atingidas e desabaram, deixando perplexas as pessoas, o que estava desabando era um dos ícones da sociedade ocidental. Mais do que a sociedade norte-americana, quando aquela imensidão de “concreto” veio abaixo, toda a sociedade ocidental foi atingida, transformando em concreto o abstrato que antes já se tornara concreto através de Marx: o que era sólido desmanchou no ar!

Nossa sociedade baseia-se nas certezas que a razão, fortalecida em 2.500 anos de especulação, construiu. As mesmas certezas que nos fazem tomar um avião, ou um elevador, confiando cegamente que “vai dar tudo certo”. Porém, pode acontecer que alguma coisa não dê certo. Ou que tudo dê errado. Ou que tudo dê certo sob outro ponto de vista, e as torres de nossas certezas desabem. Ou seja, a tecnologia, filha da ciência, filha da razão, é limitada. As verdades científicas são relativas. E nosso modelo de mundo é vazio e ilusório, de modo que o mundo que consideramos real não é o território previsível e seguro que imaginamos, antes ele é um pequeno barco a navegar sobre um imenso mar, que desconhecemos. A sociedade norte-americana descobriu isso da forma mais dolorida. O símbolo emblemático do materialismo e do poder econômico tinha pés de barro e desabou vergonhosamente, deixando por trás de si escombros que cheiraram mal por meses a fio.

Poderíamos nos colocar na posição de explorados pelo modelo e comemorar o acontecido. Ou como fez o presidente Lula, em relação à crise econômica, dizer que isso é coisa dos loiros de olhos azuis. Igualmente, neste caso, faríamos “filosofia de boteco”. Acho que podemos e devemos fazer mais. Pois na verdade, mesmo que de forma periférica, fazemos parte e alimentamos a ideologia desta sociedade que se propôs dominar a natureza, mas na verdade está na mão dela, pois desconhece sua verdadeira essência. A queda das torres acertou em cheio o orgulho e a autossuficiência da sociedade norte-americana, mas junto com ela todo o paradigma da sociedade ocidental, à qual pertencemos. Pois quando usamos nosso carro para nos deslocarmos da casa ao trabalho, nós esperamos que ele funcione, e esperamos que haja combustível nos postos de abastecimento, e a preços estáveis e baixos. E se algo mudar esta constância de nossas vidas, nós vociferamos contra os políticos. Ou seja, resumindo, quando o Sr. Bush jogou bombas no Iraque e no Afeganistão, foi em nosso nome, e em defesa de nosso modo de vida que ele o fez, por mais que isso seja difícil de admitir, numa conversa de boteco. E ainda hoje bombas são lançadas, e crianças são mortas. E ainda hoje é em defesa de nosso modo de vida que isso ocorre, desculpa eu jogar isso assim em sua cara, caro leitor.

A afirmação acima pode causar alguma estranheza pelo modo como opera o Ocidente, que nos induz a sermos cegos para a totalidade. Nossa sociedade não é diferente de nenhuma outra, em sua ação concreta. Ela também mata para garantir seu modo de vida. Mas como dividimos a realidade em mil pedaços, cada um de nós faz uma pequena parte – e há mesmo os que fazem a parte suja, e são bem pagos para isso – de modo que nossa ação destruidora pode ser atribuída sempre aos outros: À Igreja, ao Estado, ao Sr. Bush ou à Sra. Margaret. Por isso aqueles jovens tomaram aqueles aviões, e o abstrato cuidou para que eles nos atingissem em cheio. Pois é evidente que esse modo de ser “falso” não continuará a existir assim indefinidamente. Chegará o dia em que teremos de “viver a verdade”, ou seja, o dia que teremos de inaugurar uma vida plena, transparente, saindo desse fetichismo e dessa mentira, que não é responsabilidade de ninguém, e ao mesmo tempo é de todos. E justamente, é para que isso aconteça que o abstrato nos envia sinais, e continuará enviando, até que compreendamos o que está em jogo. Então, foi para que abramos os olhos que aconteceu o 11 de setembro. Pois aqueles aviões, artefatos da tecnologia que achamos às vezes símbolos do bem, outras do mal, dependendo do “ponto de vista” pelo qual os consideramos, nos trazem um recado: que é hora de olharmos com mais cuidado para as torres de nossas certezas, pois elas tem pés de barro. Tentemos então decifrar o evento.

Em primeiro lugar, vejamos em que consiste o ato terrorista. Longe de mim defendê-lo, mas o fato é que ele é em si o ato de alguém que prioriza um outro mundo, em detrimento deste. E o que preferimos ignorar é que um ato desse mesmo tipo jaz no fundamento de nossa sociedade. Quando Jesus Cristo optou por morrer, em nome de outro mundo, ele não se perguntou se isso no futuro geraria a morte de milhões. Ou seja, ele estava seguindo a orientação do “Pai”, que o levou a morrer na cruz em vista de um mundo novo. E justamente, essa aceitação do sacrifício em vista de algo alhures é que fez o ato de Jesus ser transformador, se constituindo em uma das raízes dessa sociedade tecnológica, que tirou as divindades do mundo para poder fazer ciência. Isso iguala seu ato ao daqueles jovens que voaram para a morte, e derrubaram aquelas torres. Como Jesus, eles tinham um acordo, e estavam seguindo um plano previamente traçado. Pela Al-Qaeda? É possível, mas não somente por ela, ou por qualquer outro interesse “deste mundo”. Alguma instância alhures quiçá quer que entendamos algo que nos escapa. Então ela fez aqueles aviões se chocarem exatamente no vazio das torres de nossas certezas, e elas vieram abaixo, trágica e vergonhosamente. Pois como aqueles jovens morreram em vida para este mundo, na medida em que decidiram se doar em vista de algo superior, o abstrato veio através de seu ato, e agora está diante de nós: decifra-me ou devoro-te!

Aqueles jovens pensam algo de nós, caro leitor. E acredite, eles têm razão! Pois basta ser ser humano e pensar para ter razão. E quem disse isso, fomos nós mesmos, os “iluministas”.  Todos os pontos de vista são justificáveis, se nos colocarmos no ponto onde se formaram. E do ponto de vista daqueles jovens, nós somos hipócritas, falsos, e queremos destruí-los, a eles e a suas famílias. Pois eles olham para nós, e escutam lindas frases e promessas, mas nossa ação é de domínio pela força, de incompreensão pelos seus valores. Nós falamos em amor, mas praticamos a guerra e a espoliação. Se não se submetem a nossos interesses, ocupamos, destruímos, semeamos a discórdia. Falamos em igualdade, fraternidade e felicidade universal, mas construímos desigualdades, dor e destruição.  Como um Fausto que a tudo dominou, acabamos no final destruindo a pequena aldeia antiga, que é nossa raiz (qualquer semelhança com o Afeganistão não é mera coincidência). De modo que aqueles aviões vieram para mostrar, primeiramente, que somos cegos, e que nosso discurso é vazio.

OK, os terroristas não são diferentes de nós, pois também eles buscam o lucro e a riqueza, e também eles matam e destroem. É verdade, e o que nos iguala a todos é justamente a cegueira do ser humano, que nos mantém num estado de total ignorância, onde nos mantemos presos uns aos outros como moscas numa armadilha. Aliás, não fomos nós que inventamos os conflitos no Oriente Médio. Se tomarmos o panorama daquela região nos tempos de Jesus, veremos que não mudou nada na essência. Continuam as facções lutando umas contra as outras, numa manifestação de violência e ódio. Nós apenas potencializamos o conflito, e o trouxemos para o palco, pois temos interesses naquela região (não é mesmo, caro leitor?) e por que somos a civilização da tecnologia e da destruição em larga escala.  E justamente, essa coincidência de ternos interesses naquela região conturbada do mundo, e a resistência do problema a uma solução efetiva, são os indicativos de que aí reside algo que não compreendemos. E agora esse algo veio até nós, e por uma “incrível coincidência” acertou exatamente em nosso ponto frágil, e derrubou aquelas torres. O que mais será preciso destruir, para que compreendamos o que está em jogo?

Ora, o que está em jogo é que nós somos fundamentalistas, na origem, mas preferimos fechar os olhos para isso. Por isso nós dissemos linhas atrás que o Afeganistão é aquela pequena aldeia, que resiste a Fausto obrigando-o a passar sobre suas próprias raízes. E foi esse “atropelamento de si mesmo” uma das coisas que fez Fausto ficar cego, para não ver o que fizera. Nossa sociedade se funda na tradição grega, que seguiu o conselho de Parmênides e obstaculizou o não-ser, para poder racionalizar o mundo. Porém, no vazio que tal consideração de mundo provocou, se instalou uma pequena semente, que tomou o interior do edifício, e que no frigir dos ovos é algo equivalente ao que professam aqueles jovens. Por isso eles tomaram aqueles aviões, e nos acertaram em cheio, fazendo nossas torres gêmeas desabar. Então, foi também o não-ser que veio com aqueles aviões, e agora está parado aí diante de nós: decifra-me ou devoro-te!

Nós dissemos acima que “preferimos fechar os olhos” para nosso fundamentalismo, mas isso é uma simplificação. O que ocorre é que nossa construção de mundo é dupla, o que nos provoca uma cegueira e uma “surdez”. Como uma sociedade de mercadores que somos, o mundo de objetos separados se transformou em um mundo de mercadorias, disponíveis a quem as puder comprar, ou tomar. Se investimos um valor em algo, queremos que nos dê retorno. Não vale mais aquele raciocínio pré-capitalista, de que “mais vale um gosto que um tostão no bolso”, mas sim o “raciocínio do mercador”, para o qual o mundo é visto como um investimento, de lucros e prejuízos. E quando nós falamos algo, estamos tentando vender um produto, nem que seja nós mesmos, e não interessa tanto se o temos na mão, mas o anúncio é como uma promessa, que depois vamos ver se cumprimos, ou apenas nos aproximamos dela. E quando vêm as reclamações dos “clientes”, nas fazemos “ouvidos de mercador”, ou seja, nós descartamos certas coisas pelo “bem do negócio”. Mas acontece que aqueles aviões vieram para nos dizer que está chegando ao fim o sentido do “negócio”, e que não podemos mais ignorar certas coisas que ouvimos, e descartamos.

Sem dúvida todos nós somos contra a violência, a guerra, as desigualdades, e tudo o mais. Mas acontece que a cegueira inerente ao modo de construir o mundo nos impede de assumir plenamente a responsabilidade sobre nossas ações, e principalmente, nos impede de ver como afinal podemos entregar ao mundo e a nós mesmos o produto que anunciamos.  Como não vemos como fazer isso na prática, nossa ação no mundo torna-se vazia, apartada de nosso discurso, pois não abrimos mão de nossa vida por algo que não vemos como será afinal. Os fundamentalistas do Islã olham para nós, e não nos compreendem, como nós não os compreendemos, pois para nós não tem mais sentido morrer por algo, a não ser que esse algo seja uma vida eterna e plena de felicidade. E veja, é isso que promete nossa religião, mas nós a professamos como uma coisa morta. Então, aqueles aviões vieram para nos dizer que temos de decidir se acreditamos naquilo que falamos, ou não. No caso de dizermos não, temos de reduzir a nada a maior parte de nossos belos ideais, e nos resignar a uma vida miserável e mergulhada na mais profunda ignorância. No caso de dizermos sim, temos de encarar como uma verdade viva as coisas que professamos como uma esperança, e isso equivale a tentar efetivamente realizá-las na prática. Se somos uma sociedade de mercadores, pois tudo para nós é transformado em mercadorias, aqueles aviões vieram para avisar que está chegando a hora de entregar o produto, ou reconhecer o calote.

Diante da questão colocada, se acreditássemos ser possível responder não, ou seja, responder que o que a humanidade fez ao longo das eras se limita a algo triste e vazio, nem teríamos perdido nosso tempo escrevendo este livro. Nós assumimos desde o início o sentido evolutivo, e nele nada é sem sentido, ainda que não consigamos compreender tudo o que está em jogo. Em vista disso, a resposta do autor é sim, ou seja, temos de caminhar para a frente, no sentido de dar acabamento à nossas palavras. Se fizermos isso, as torres cessarão de desabar, e o mundo fará silêncio, pois estará chegando a hora de ouvir novamente aquele antigo som.

Originalmente, eram quatro os alvos dos terroristas. Mas somente o Word Trade Center foi atingido, e com uma eficiência que nos permite aventar que alguma coisa mais do que a Al-Qaeda, ou qualquer outro interesse deste mundo,  desejava que aquelas torres caíssem. Este fato, aliado ao fato de que os outros alvos não foram atingidos, ou o foram apenas em parte, nos permite ainda ver algo mais que o evento nos quer mostrar, qual seja: O que será atingido e desaparecerá num presumível novo modo de vida é a duplicidade matéria-espírito, ou a chamada “escatologia”, que descreve um mundo de objetos separados, mas ele é somente a ponta do iceberg. Essa duplicidade do mundo é que nos faz cegos para o abstrato e para nós mesmos, e por isso eram duplas as torres que desabaram. E como o mundo de objetos separados acabou se transformando, na sociedade ocidental, num mundo de mercadorias, das quais a “mercadoria dinheiro” é a forma por excelência, foi o seu símbolo, representando o mundo de objetos separados, que foi atingido. A destruição daquelas torres gêmeas, de forma apoteótica, nos anuncia um futuro que será o fim de nossa duplicidade, de nossa cegueira, e de nossa transformação do essencial em objetos separados, que em nós se transformaram em mercadorias acessíveis a quem as pode comprar, ou tomar.

Porém, os outros alvos do atentado não sofreram prejuízos significativos. O Pentágono foi minimamente atingido, o que nos mostra que a organização do mundo não sofrerá mudanças significativas, mas será usada em um sentido absolutamente novo, colocando a importância em outra esfera, de modo desmistificado. Assim como a estrutura do Império Romano continuou após o advento do cristianismo, mas foi usada em outro sentido, também o Ocidente preservará sua organização, mas retirará sua atenção do concreto, e se abrirá para o abstrato, possibilitando enfim que haja uma pacificação efetiva do mundo e a humanidade possa se juntar num projeto coletivo. Também, o Capitólio e a Casa Branca não foram atingidos, sendo que o Capitólio foi defendido pelos tripulantes da aeronave, e a Casa Branca não foi sequer ameaçada, pois os que a iriam atingir foram pegos antes do próprio evento do 11 de setembro. Ou seja, os valores democráticos, de liberdade, igualdade e fraternidade, apesar de seu viés falso,  continuarão ilesos, pois eles são o centro do próprio movimento da criatura em evolução, em direção à felicidade para todos. A pomba branca, que esconde por traz da angelical aparência uma agressividade insuspeita, continuará a voar até que enfim sua mentira venha a se tornar verdade, de modo a permitir que o homem não seja mais o lobo de si mesmo, e outra ave – o mágico pássaro azul da felicidade – possa voar.

Mas para que isso aconteça, nós temos de compreender, e agir. A humanidade cristã está esperando a volta de Jesus. Se ele não voltou até hoje, é possível que não volte mais, ou que para que ele volte necessitemos fazer algo. Ou ainda, que essa anunciada volta signifique outra coisa, que nós ainda não compreendemos. E para que a compreendamos, e nesta compreensão avancemos na compreensão do mundo e de nós mesmos, teremos de primeiro compreender de um modo satisfatório, sem reduções simplificadoras e sem mistificação quem foi Jesus Cristo, e o que foi que o envolveu, e a nós mesmos.

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Do livro “Quem Tem Ouvidos – Um Salto  do Pensamento para o Inconcebível” de João Batista Mezzomo – Editora Besourobox – Porto Alegre (p. 457 à 465) – Enviado pelo Autor!