Mídia dilui significado da descoberta de papiro com
"ensinamentos secretos" de Jesus
As notícias
foram dadas como alguma coisa entre Indiana Jones, conspirações do “Código da
Vinci” de Dan Brown ou sobre Jesus convenientemente próximo do Natal. As
notícias sobre a descoberta do manuscrito em grego do “Primeiro Apocalipse de
Tiago” (manuscrito apócrifo gnóstico até então conhecido em linguagem copta da
chamada “Biblioteca de Nag Hammadi”), perdido no acervo da Universidade de
Oxford, foram cercadas por uma mitologia midiática que sempre é acionada para
diluir aquilo que é de mais virulento e revolucionário no Gnosticismo (razão
pela qual foi tão perseguido por toda a História): os conflitos políticos e
econômicos como parte do drama de uma luta cósmica entre o Bem e o Mal, sem
superação dialética ou solução evolutiva. A grande mídia cobriu a descoberta
como “religiosa”, diluindo a potencial ameaça às instituições desse mundo: de
que Jesus não veio para nos “salvar”, mas para nos revelar algo que já existe
dentro de nós – apenas nos fazem esquecer através de ilusões. E a mídia que
“noticia” a descoberta do manuscrito é uma delas.
Nem tão
perto do Natal para ninguém perceber a notícias, ocupados que todos estão com
seus afazeres natalinos; nem tão longe do Natal o suficiente para que ninguém
associe o simbolismo da descoberta com a data do nascimento de Jesus.
Por isso o
timing da notícia (primeira semana de dezembro) foi perfeito e, portanto,
suspeito pelos seus propósitos.
Vamos em
primeiro lugar à notícia: estudiosos
encontraram a mais antiga cópia de um texto cristão apócrifo em meio ao acervo
da Universidade de Oxford, uma das mais antigas do mundo.
O manuscrito
é uma edição em grego do “Primeiro Apocalipse de Tiago” que reúne os chamados
“ensinamentos secretos de Jesus” para o seu “irmão” Tiago – para muitos
historiadores, um “irmão espiritual”.
Esse texto
já era conhecido em copta (linguagem egípcia que evoluiu dos hieróglifos)
dentro da coleção de 52 manuscritos gnósticos organizados em 13 códices de
papel velino encadernados em couro, descobertos em 1945 no Alto Egito, e que
acabaram conhecidos como “Biblioteca de Nag Hammadi” – aqui no Brasil reunidos
em uma edição em português da editora Madras: James M. Robinson, A Biblioteca
de Nag Hammadi. A biblioteca foi encontrada em um enorme jarro no que é hoje a
cidade de Nag Hammadi.
O documento
de 1.600 anos atrás, descreve como Jesus passa o conhecimento da “prisão
terrena” para Tiago, além de revelar que o mundo é protegido por figuras
demoníacas (os “Arcontes”) que bloqueiam o caminho da elevação espiritual após
a morte através dos diversos céus, mantendo-nos prisioneiros do mundo material.
Narrativa herética
Essa
narrativa foi considerada herética por apresentar uma versão de Jesus bem
diferente: muito mais revelador de uma sabedoria já pré-existente no homem
(porém, esquecida) do que um messias que teria vindo para redimir a humanidade
do pecado – na verdade todo o pecado e o Mal já estariam presentes na própria
Criação que aprisiona a humanidade.
Em outras
palavras, o “Primeiro Apocalipse de Tiago” mostra Jesus como um enviado (um “aeon”)
que não tinha o propósito de nos “salvar”, mas tentar despertar-nos do sono do
esquecimento através dos “ensinamentos secretos” – a gnose.
O texto,
assim como todo o restante da coleção gnóstica de Nag Hammadi, foi proibido
desde que Athanasius, bispo de Alexandria, definiu o cânone dos 27 livros que
formariam o Novo Testamento bíblico. Banindo todas as seitas sincréticas
conhecidas como “gnósticas”, condenando-as à perseguição e o genocídio, como o
episódio do massacre dos gnósticos Cátaros em Laguedoc, Sul da França, no
século XII.
Desde o
triunfo do cristianismo ortodoxo, o Gnosticismo (assim como os seus derivados
esotéricos como a Alquimia) acabou habitando os subterrâneos dos movimentos
sociais. E acabou transcendendo o campo religioso para sua cosmogonia e
ontologia inspirarem pensadores revolucionários e movimentos culturais e
artísticos críticos: o Iluminismo, o Romantismo dos séculos XVIII-XIX, o
revival espiritualista e esotérico do Espiritismo e Teosofia do século XIX, até
chegar no século XX no campo científico e cultura de massas – dos
paradoxos da Física Quântica até
alcançar Hollywood é a suas melhores traduções fílmicas (porque didáticos) do
drama cósmico descrito pelos evangelhos apócrifos gnósticos: Matrix e Show de
Truman.
Mitologias midiáticas
contra o Gnosticismo
Por isso,
desde a descoberta da coleção de Nag Hammadi, o mundo tem uma bomba nas mãos –
sincronicamente, coincidiu com as explosões das bombas atômicas em Hiroxima e
Nagasaki. Evangelhos diametralmente opostos aos bíblicos canônicos, que
potencialmente são capazes de colocar os conflitos econômicos e políticos desse
mundo em um novo patamar – como partes de um drama cósmico de uma luta
universal entre o Bem e o Mal, sem superação dialética ou solução evolutiva.
Seria muita
ingenuidade da nossa parte acreditarmos que a perseguição ao Gnosticismo tenha
acabado e ficado lá atrás na Inquisição católica. Apenas as estratégias de
repressão a uma histórica heresia mudaram: de banimentos, assassinatos e
genocídios à diluição através da grande mídia e indústria do entretenimento.
Um olhar
mais detido na cobertura feita pela mídia corporativa à notícia da descoberta
da edição em grego do Apocalipse de Tiago transita por diversos mitos que
compõe uma mitologia midiática maior:
(a) a
compartimentalização da notícia aos chamados “fatos diversos” – curiosidades
históricas, científicas etc.;
(b) o mito
do “antigo”, do “perdido” ou do “raro” – um manuscrito em língua morta no qual
o fetichismo da forma (o “papiro”, o “antigo”) desvia a atenção da mensagem do
conteúdo;
(c) o mito
do objeto “religioso”, principalmente pela proximidade da suposta data do
nascimento de Jesus;
(d) o mito
do “herege”, do “secreto”, um fetiche que se aproxima de um imaginário
conspiratório ao estilo do canal History Channel ou alguma coisa parecida com
“Código da Vinci” de Dan Brown.
A cobertura
foi anódina, na qual se evita o termo “Gnosticismo” para substituir por
“cristianismo primitivo”, “manuscrito sobre Jesus”, “texto herege” ou “texto
proibido” – menos pela sua mensagem, mas muito mais por supostos detalhes
pessoais de Jesus: ele supostamente teve um “irmão”...
Os
pesquisadores bíblicos da Universidade do Texas em Austin já haviam descoberto
o documento no início do ano nos arquivos de Oxford e anunciada a descoberta no
encontro anual da Society of Biblical Literature de Boston em 18 de novembro
para só agora ser divulgado pela grande mídia, revelando o timing preciso,
equidistante às comemorações natalinas. O que produz um efeito ideológico: a
notícia como uma descoberta religiosa... coisas de religião...
Manuscrito explosivo
E porque o
“Apocalipse de Tiago” é um componente explosivo no interior da bomba armada
pela Biblioteca de Nag Hammadi?
O texto não
é um apocalipse propriamente dito, mas com características apocalípticas ao
descrever a geografia celeste com seus 72 céus e as “senhas secretas” dadas a
Tiago por Jesus para que consiga escapar dos poderes malignos dos Arcontes
(regentes de cada céu sob o poder do Demiurgo – Yaodabaoth) após os martírios e
a morte no plano material – para ler uma tradução do texto clique aqui.
Jesus
adverte a Tiago que ele também passará por algo semelhante aos martírios da
Paixão: “Não temas Tiago! Apanhar-te-ão a ti também. Mas separa-te de
Jerusalém! Pois ela é a taça da amargura durante os tempos aos filhos da luz. É
um lugar de estadia de um grande número de arcontes, mas tua redenção estará a
salvo deles”.
A ascensão
de Tiago e dos gnósticos é na direção da Plenitude (o Pleroma), a moradia do
verdadeiro Pai fora da Criação.
O Tiago em
questão não é um dos apóstolos, mas aquele que na tradição do cristianismo
ficou conhecido como “Tiago, o irmão do Senhor” e “Tiago, o justo”.
O cenário da
narrativa é de iniquidade e perseguições ao povo e como a dedicação de
Tiago ao Deus Supremo (“Aquele-que-é”)
despertou a fúria do deus dos judeus (o criador do mundo material e comandantes
dos Arcontes), destruindo o Templo e Jerusalém.
O
“Apocalipse de Tiago” explicita esse conflito cósmico que envolve tanto o mundo
material (político) como o espiritual (pós-morte). Por isso, a contundência
desse manuscrito, mensagem que passou bem distante da cobertura dada pela
grande mídia.
No cinema,
os clássicos Matrix e Show de Truman figuram esse conflito no mundo material –
protagonistas prisioneiros em ilusões tecnologicamente criadas por arcontes
desse mundo.
Por sua vez,
filmes como Enter The Void, The Discovery, O Terceiro Olho, I Am a Ghost etc.
são exemplos de narrativas que especulam sobre essas “senhas” (a gnose) para a
alma escapar das armadilhas pós-morte que nos prendem nesse mundo físico e que
fazem girar a “roda de Samsara” do ciclo interminável de reencarnações e
sofrimento.
Sintetizando:
a notícia da edição em grego do manuscrito seria a oportunidade da discussão do
seu conteúdo – como sempre, trancado a sete chaves através da mitologia do
“secreto”, do “religioso”, do “perdido”. Como o conteúdo seria
“incompreensível” a opinião pública fica perdida no fetiche da “antiguidade”
como um documento cuja importância está perdida em si mesmo.
A
perseguição ao Gnosticismo permanece, dessa vez sob as camadas pesadas da
notícia e do entretenimento.
Com
informações do Daily Mail, Society of Biblical Literature, Independent, O
Globo.
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