O MENINO POETA – EM PLENA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
O ano de 1914 é um marco doloroso na
história da humanidade.
No dia primeiro de agosto daquele ano
a Alemanha declarou guerra à Rússia e, dois dias depois, à França. No dia
seguinte invadiu a Bélgica. Vinte e quatro horas depois, exatamente à meia
noite, a Inglaterra atacou a Alemanha. O rastilho de pólvora alastrou-se e,
antes de findar agosto, o Japão investiu contra a China, tomando-lhe várias
ilhas. A ânsia do poder enlouquecera a Humanidade. A guerra espalhava-se,
rapidamente, em todos os continentes envolvendo, também, o Brasil.
A Primeira Guerra Mundial foi uma das
provas mais estarrecedoras do atraso espiritual da Humanidade. Durou, exatamente,
quatro anos e três meses. Desencarnou e aleijou milhões de pessoas. Mas a
espiritualidade jamais deixara de enviar missionários à Terra e, na madrugada
do dia 25 de setembro de 1914 (cerca de dois meses após eclodir a Primeira
Grande Guerra), um espírito superior reencarnou na antiga província do Rio Novo
– hoje a bela cidade de Avaré, no interior do estado de São Paulo. Sua missão:
defender a pureza doutrinária e consolidar a doutrina espírita em terras
brasileiras.
José Herculano Pires filósofo, parapsicólogo,
educador, romancista, poeta, jornalista, tradutor – esse legítimo apóstolo de
Allan Kardec era filho primogênito de José Pires Correa (um farmacêutico que
abandonaria a profissão para tornar-se um dos mais vibrantes jornalistas do
interior paulista) e de Bonina Amaral Simonetti Pires, descendente de antiga
família de Avaré e distinta pianista. O casal teve sete filhos: Herculano,
Heraldo, Renê, Lourdes, Marília, Diógenes e Nancy, os dois últimos
desencarnados com tenra idade.
O nascimento de Herculano Pires se
deu na residência de seus pais, uma ampla casa pintada de verde no meio do
quarteirão da rua Rio Grande do Sul, no largo São João, onde José Pires Correa
instalara, também, sua farmácia. O parto não foi tranqüilo...
Em um diário íntimo escreveu
Herculano Pires que, ao nascer, viu-se em apuros:
“Eram cinco horas de uma fria
madrugada de setembro – fim de inverno e início de primavera –, quando abri os
olhos para a visão caótica do mundo. Estávamos em 1914, ano da Primeira Guerra
Mundial. Nasci ameaçado pelo cordão umbilical, que me apertava o pescoço. Mundo
ingrato. Mal nascia e as próprias cordas da vida me agrediam em forma de
tenazes da morte .”
Nesse diário, em cujas páginas foram,
infelizmente, registradas poucas reminiscências, ainda nos dá Herculano Pires
informações sobre seu nome e sua infância:
“Mamãe me contou que eu já trazia um
nome. Não o trazia escrito na testa, mas na folhinha, pois o 25 de setembro é o
dia de são Herculano. Tio Franco sugeriu que, para reforçar a minha proteção –
pois esse são Herculano não era muito conhecido –, me dessem também o nome
popular de são José. Assim, ao nome que eu trouxera, a família juntava outro.”
E o menino, então reencarnado em
família católica, ganhou o nome completo de José Herculano Pires. Não foi
garoto robusto.
“Tive uma infância com problemas de
saúde que me acompanhariam por toda a vida. Mas a terra de Avaré e as águas do
Rio Novo me fortaleceram. Na gripe de 1918, que completou no Brasil a matança
da guerra na Europa, flutuei sobre as águas e continuei. O tifo era endêmico na
região e depois da gripe fez grandes devastações, mas dele também me livrei.”
Os problemas de saúde não impediram,
no entanto, que sua infância fosse feliz. Era Avaré uma cidade jovem, por
demais agradável. A paisagem era bucólica: ruas de areia, a matriz, o jardim
São Paulo, com sua banda aos domingos, e o coaxar dos sapos… O rio Novo de
águas cristalinas, onde homens e crianças pescavam… Os carros de boi com as
rodas rangendo alto no largo da Estação e, naturalmente, o famoso trenzinho da
Sorocabana, soltando muita fumaça, quando atingia quarenta quilômetros por
hora, a velocidade máxima…
Herculano Pires (o mais alto), aos
quatro anos de idade
Avaré, embora pacata, vez por outra
era sacudida por acontecimentos dramáticos. Quis a espiritualidade que
Herculano Pires presenciasse alguns, certamente para fazê-lo compreender,
embora ainda criança, que a terra era um planeta de angústias e que muito havia
por se fazer em prol da espiritualização do povo.
Em seu diário escreveu ele:
"Ainda criança vi muita maldade
fervendo em Avaré. Vi, à distância de um quarteirão, o velho João do Prado,
grandalhão, sair de um cartório da rua São Paulo, dar alguns passos e cair
fulminado pelos tiros de revólver que um advogado lhe desfechara nas costas.
Vi, no largo do Mercado, um homem tombar esfaqueado por outro, esvaindo-se em
sangue. Vi Rosinha casar-se por amor e por amor suicidar-se tomando formicida. Vi
um homem com a cabeça arrebentada pela própria esposa. E vi crianças chorando
na orfandade súbita, porque o pai e a mãe haviam sido mortos pela ferocidade de
alguns parentes. E vi ainda – meu Deus, que horror! –, um homem carregar pelas
ruas da cidade, obrigado pela polícia, o tronco carbonizado da vítima que
tentara destruir pelo fogo.”
Esses bárbaros crimes de morte,
evidentemente, levaram Herculano Pires, menino ainda de cinco ou seis anos de
idade, mas dotado de aguda inteligência, a pensar em Deus com frequência. A
verdade é que já estava sendo preparado pelos espíritos, a fim de, quando
adulto, bem cumprir sua missão.
Notemos agora que, desde menino,
tinha visões espirituais. Esse fato, que teria importância fundamental no
decorrer de toda sua vida, Herculano Pires revelou a Rizzini em uma entrevista
gravada. Ouçamos:
“Não eram visões místicas. Eram
visões reais. Eu via espíritos andando pela casa, à noite (disse-nos ele).
Ainda me lembro muito bem, eu era pequenino, me levantava, me afirmava na guarda
do berço e ficava olhando os espíritos vagarem pela casa. Não eram apenas
espíritos de mortos. Eu via o espírito de minha mãe, que estava viva, andar
pela casa. Minha mãe dormia e seu espírito se desprendia. E isto eu via com
bastante frequência. Esses fatos provocaram alarme em casa porque, às vezes,
via certos espíritos que me assustavam e, então, eu gritava e acordava todo o
mundo. Vinham saber de mim o que acontecera e meu pai dizia: 'Ele está
delirando, é preciso saber o que tem esse menino.' Mas eu explicava o que tinha
visto. Certa vez me aconteceu, também, um fato muito curioso. Eu já tinha uns
sete ou oito anos e, na casa do meu avô materno, em Avaré, havia um quintal
muito grande (meu avô materno era italiano e minha avó materna brasileira). E eu,
brincando com as crianças no fundo do quintal cheio de grandes mangueiras, de
repente ouvi um estalo esquisito, estranho. Olhei para o lado. Vinha vindo uma
velhinha, mais ou menos apressada, com um vestido que parecia estrangeiro e com
meias listadas de vermelho e azul; listas circulares em torno da perna. E ainda
me lembro, também, dos sapatões, para mim esquisitos... Ela não me deu
satisfação, passou perto de mim e se dirigiu para uma espécie de depósito que
havia no quintal, abriu a porta e entrou. A porta bateu e, com o estalo, voltei
a mim. Quer dizer, saí daquele encantamento. Fui correndo desesperado para
casa, gritando. Meu avô foi o primeiro a sair ao meu encontro: 'O que há?'. Eu
contei. 'Repita isso!' Eu repeti. 'Como era ela?' Eu contei. E dei dois
detalhes de que hoje não me lembro. Então ele virou-se para minha avó e disse:
'É minha mãe! É minha mãe!' Foi um fenômeno que ficou gravado na minha
memória.”
A família de Herculano Pires, já o
dissemos, era, então, católica. É inegável que essas visões na infância tinham
o objetivo maior de levá-lo, posteriormente, ao encontro do espiritismo.
Herculano Pires, quando criança, foi
uma prova vigorosa da reencarnação. Ele trazia da espiritualidade um lastro
cultural vastíssimo, adquirido em vidas anteriores, e uma vocação perfeitamente
definida. Menino notável, com nove anos de idade, calças curtas, ainda nos
bancos de uma escola primária na cidade de Itaí, para onde sua família se
transferira em 1920, ele se revelou poeta. Já conhecedor das leis rígidas da
arte poética (que prodígio!), o menino redigiu em versos decassílabos um
soneto, que é, ao contrário do que o vulgo pensa, a forma poética mais difícil
de ser dominada. O tema escolhido pelo garoto foi o largo São João, de Avaré;
tema adulto e árido.
Viveu Herculano Pires em Itaí dos
seis aos dez anos de idade. No dia 7 de setembro de 1922 (relembraria ele
cinquenta anos depois em uma crônica), “era então um menino de oito anos e
formava numa tropa de escoteiros, orgulhoso do meu uniforme cáqui e do meu
lenço vermelho tatalando ao pescoço. Meu comandante era o professor Victorino,
gordinho e baixo, também vestido de uniforme. E quem proferiu o discurso mais
bonito e mais retumbante, comemorando o primeiro centenário da Independência do
Brasil, foi naturalmente o meu pai. Na festinha da escola, em dias de feriados,
éramos dois, eu e a menina Adélia, minha namorada (os primeiros das duas
turmas: masculina e feminina) que ficávamos em pé ladeando o mastro, na hora do
hasteamento.”
Quatro anos depois seu pai, buscando
melhoria financeira, fixou residência na cidade de Cerqueira César. Mas por
pouco tempo. Voltou a residir com a família em Avaré, onde matriculou o filho
na Escola de Comércio, fundada e dirigida pelo professor Jonas Alves de
Almeida, de quem, ao longo da vida, guardaria Herculano Pires a mais grata
recordação. Mas não pôde concluir o curso.
A vida profissional de José Pires
Correa não era fácil. E, assim, buscando sempre melhores condições para o
sustento da família, tornou a residir na cidade de Cerqueira César. Herculano
tinha, então, doze anos de idade e… continuava a escrever poesias.
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