Religiões, Abusos, Violências e
Explorações da Fé
É um
pressuposto de qualquer pessoa de fé sincera, que as religiões deveriam
melhorar o ser humano, promover o amor, a compaixão, a bondade e a paz.
Entretanto, desde sempre, as religiões – e não há nenhuma exceção – têm feito o
contrário. Feito o comércio deslavado da fé, da venda das indulgências
católicas medievais às vassouras abençoadas dos pentecostais brasileiros. Têm
sido o cenário de abusos de toda espécie, sexual, de poder, de opressão. Têm
abençoado canhões e provocado guerras, das Cruzadas aos fundamentalistas
islâmicos e israelenses.
Ora, por
quê? Jesus não ensinou a amar o próximo? Buda não recomendou compaixão? Os
Vedas e o Bhagavad Gita não pregam a ação desinteressada em favor do bem? O
Alcorão não se refere a Deus como o Todo-misericordioso? E acima de tudo, as
religiões em sua maioria, não nos ensinam a transcendência e, portanto, o
desprendimento, ou pelo menos a moderação, diante das ilusões do poder, do luxo
e dos prazeres sensuais?
O que se dá
então? Muita gente, perplexa com isso, afasta-se de qualquer denominação
religiosa ou qualquer forma de espiritualidade, mesmo livre, pelo horror da
hipocrisia, dos abusos e da lama histórica que envolve todas as tradições
conhecidas.
Entretanto,
não se pode jogar tudo na mesma vala. As grandes inspirações religiosas do
planeta, como Jesus, Buda, Confúcio, Francisco de Assis, Gandhi, apenas para
citar alguns – foram de fato pessoas que vivenciaram uma espiritualidade limpa,
elevada, honesta, pacífica, compassiva e continuam contagiando milhões de almas
com suas vidas.
Entre as
muitas pessoas com quem possamos cruzar em nossas jornadas, em qualquer
cultura, país ou religião, encontramos aquelas que irradiam paz, sabedoria,
trabalho engajado por um mundo melhor, a partir da inspiração de valores espirituais.
Tantas pessoas anônimas, simples, sem projeção social, que são exemplos de fé
sincera.
Mas é
verdade que na religião, muitas vezes se abrigam celerados da pior espécie, se
escondem as taras mais predatórias e as violências mais impiedosas.
Basta ver
recentemente as repugnantes denúncias de João de Deus (que de Deus nada tem) e
as monstruosas notícias de padres católicos, na Itália e na Argentina que
durante mais de 40 anos abusaram de crianças surdas, deixando um rastro de
traumas, suicídios e vergonha…
Gosto
sempre de lembrar que a única vez em que Jesus foi duro com alguém em sua vida,
foi justamente com os fariseus e saduceus – sacerdotes do judaísmo antigo – de
duas correntes distintas. A eles, Jesus dirigiu palavras extremas, chamando-os
de hipócritas e sepulcros caiados, brancos por fora, mas cheios de podridão por
dentro.
O problema
é justamente esse. Como a religião propõem um ideal de padrão moral elevado,
seja de santidade, dentro do catolicismo; de evolução espiritual, dentro do
espiritismo; de iluminação, dentro do budismo – eis que se aproximam pessoas
sedentas mais de poder do que santidade, mais de tesão pervertido do que de
elevação do espírito, mais de trevas do que de luz e adotam a capa farisaica da
bondade artificial.
Criam
hierarquias, estabelecem regras, montam estruturas de poder, arvoram-se em
gurus, em sacerdotes, em médiuns em estrelato espetacular e sacralizam sua
ação, submetem os incautos, abusam dos fieis e são tudo, menos religiosos de
fato.
Isso nos
leva a uma questão crucial: enquanto as religiões forem encaradas como caminhos
de elevação pessoal, autônoma, que podem ser trilhados em comunidades
horizontais, não hierarquizadas e não submetidas a nenhuma autoridade – é mais
seguro que elas possam de fato contribuir para melhorar o ser humano. Mas
quando a instituição se torna mais importante que os seres humanos, as
hierarquias mais sólidas que as virtudes, o poder mais atraente do que o
serviço ao próximo, então entramos na história repetida de séculos.
Na história
do cristianismo, por exemplo, tão largamente estudada, sabemos que enquanto
Jesus e um punhado de pescadores andavam pela Palestina e ainda nos primeiros
momentos, em que apóstolos devotados percorriam o mundo livremente para
divulgar a Boa Nova, havia fraternidade, comunhão, partilha. Mas no decorrer
dos séculos, conforme foi se solidificando o sacerdócio, até chegar ao papado
lá pelo século V, o cristianismo foi ganhando em ouro e perdendo em amor, foi
crescendo em perseguição aos que pensavam diferente e abandonando princípios de
compaixão para com todos.
Talvez tudo
isso se deva também ao fato das pessoas se aproximarem das religiões, querendo
uma santidade forçada, uma iluminação rápida, adotando uma capa para soterrar
seu lado sombrio e os impulsos do inconsciente. A moral imposta, que se veste
como uma armadura, para conter as pulsões humanas e não para usá-las, e quando
necessário transformá-las, de maneira saudável e produtiva, acaba gerando uma
legião de pessoas com voz adocicada e veneno no coração.
O caminho
sincero da espiritualidade é autêntico, humano, gradativo, sem ostentação de
falsa santidade, sem pretensão de súbita iluminação.
Kardec
recomendava sermos homens (e mulheres) de bem. Integridade, sinceridade,
respeito ao próximo, fraternidade… qualidades que podem ser cultivadas com
cuidado, com paciência e sem exibicionismo. O que significa que o ser humano de
bem é o que é, e não se esconde atrás de uma falsa imagem de si mesmo. E esse
esconderijo pode ser uma inocente simulação de mansuetude, enquanto a pessoa
está internamente espumando de raiva ou o extremo de uma vida de crimes
hediondos por trás de uma batina ou de uma mediunidade.
Outro
aspecto importante é que em todas as tradições coexistem duas posturas diversas
para a melhoria do ser humano. Há o caminho repressor, punitivo – aquele que
enfatiza o ser como um pecador, caído, que precisa ser contido. E há o caminho
que reconhece a divindade que mora em todos os seres e faz o trabalho de
despertar a consciência, fazer jorrar algo de bom que ilumine e não trancafie o
que é sombra – que necessariamente vai explodir mais à frente. A luz que habita
em nós, se desenterrada, se parida, fulgura e dissolve a nossa própria sombra e
se irradia pelo mundo. Lembrando Jesus: “Vós sois a luz do mundo!”
Dentro
dessa perspectiva, mesmo os mais celerados e sombrios, o pior abusador ou o
pior inquisidor, também podem ser acordados em sua consciência e fazerem nascer
sua luz interior. Para visões reencarnacionistas, como a espírita, isso se fará
no tempo das múltiplas vidas, mas se fará. Na visão da eternidade, o bem sempre
vence e a luz sempre brilha acima.
Dora
Incontri
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Imagem:
Marco A. C. Neves