domingo, 24 de fevereiro de 2019

Religiões, Abusos, Violências e Explorações da Fé

Religiões, Abusos, Violências e Explorações da Fé




É um pressuposto de qualquer pessoa de fé sincera, que as religiões deveriam melhorar o ser humano, promover o amor, a compaixão, a bondade e a paz. Entretanto, desde sempre, as religiões – e não há nenhuma exceção – têm feito o contrário. Feito o comércio deslavado da fé, da venda das indulgências católicas medievais às vassouras abençoadas dos pentecostais brasileiros. Têm sido o cenário de abusos de toda espécie, sexual, de poder, de opressão. Têm abençoado canhões e provocado guerras, das Cruzadas aos fundamentalistas islâmicos e israelenses. 

Ora, por quê? Jesus não ensinou a amar o próximo? Buda não recomendou compaixão? Os Vedas e o Bhagavad Gita não pregam a ação desinteressada em favor do bem? O Alcorão não se refere a Deus como o Todo-misericordioso? E acima de tudo, as religiões em sua maioria, não nos ensinam a transcendência e, portanto, o desprendimento, ou pelo menos a moderação, diante das ilusões do poder, do luxo e dos prazeres sensuais?

O que se dá então? Muita gente, perplexa com isso, afasta-se de qualquer denominação religiosa ou qualquer forma de espiritualidade, mesmo livre, pelo horror da hipocrisia, dos abusos e da lama histórica que envolve todas as tradições conhecidas.

Entretanto, não se pode jogar tudo na mesma vala. As grandes inspirações religiosas do planeta, como Jesus, Buda, Confúcio, Francisco de Assis, Gandhi, apenas para citar alguns – foram de fato pessoas que vivenciaram uma espiritualidade limpa, elevada, honesta, pacífica, compassiva e continuam contagiando milhões de almas com suas vidas.

Entre as muitas pessoas com quem possamos cruzar em nossas jornadas, em qualquer cultura, país ou religião, encontramos aquelas que irradiam paz, sabedoria, trabalho engajado por um mundo melhor, a partir da inspiração de valores espirituais. Tantas pessoas anônimas, simples, sem projeção social, que são exemplos de fé sincera.
Mas é verdade que na religião, muitas vezes se abrigam celerados da pior espécie, se escondem as taras mais predatórias e as violências mais impiedosas.
Basta ver recentemente as repugnantes denúncias de João de Deus (que de Deus nada tem) e as monstruosas notícias de padres católicos, na Itália e na Argentina que durante mais de 40 anos abusaram de crianças surdas, deixando um rastro de traumas, suicídios e vergonha…
Gosto sempre de lembrar que a única vez em que Jesus foi duro com alguém em sua vida, foi justamente com os fariseus e saduceus – sacerdotes do judaísmo antigo – de duas correntes distintas. A eles, Jesus dirigiu palavras extremas, chamando-os de hipócritas e sepulcros caiados, brancos por fora, mas cheios de podridão por dentro.
O problema é justamente esse. Como a religião propõem um ideal de padrão moral elevado, seja de santidade, dentro do catolicismo; de evolução espiritual, dentro do espiritismo; de iluminação, dentro do budismo – eis que se aproximam pessoas sedentas mais de poder do que santidade, mais de tesão pervertido do que de elevação do espírito, mais de trevas do que de luz e adotam a capa farisaica da bondade artificial.

Criam hierarquias, estabelecem regras, montam estruturas de poder, arvoram-se em gurus, em sacerdotes, em médiuns em estrelato espetacular e sacralizam sua ação, submetem os incautos, abusam dos fieis e são tudo, menos religiosos de fato.

Isso nos leva a uma questão crucial: enquanto as religiões forem encaradas como caminhos de elevação pessoal, autônoma, que podem ser trilhados em comunidades horizontais, não hierarquizadas e não submetidas a nenhuma autoridade – é mais seguro que elas possam de fato contribuir para melhorar o ser humano. Mas quando a instituição se torna mais importante que os seres humanos, as hierarquias mais sólidas que as virtudes, o poder mais atraente do que o serviço ao próximo, então entramos na história repetida de séculos.

Na história do cristianismo, por exemplo, tão largamente estudada, sabemos que enquanto Jesus e um punhado de pescadores andavam pela Palestina e ainda nos primeiros momentos, em que apóstolos devotados percorriam o mundo livremente para divulgar a Boa Nova, havia fraternidade, comunhão, partilha. Mas no decorrer dos séculos, conforme foi se solidificando o sacerdócio, até chegar ao papado lá pelo século V, o cristianismo foi ganhando em ouro e perdendo em amor, foi crescendo em perseguição aos que pensavam diferente e abandonando princípios de compaixão para com todos.

Talvez tudo isso se deva também ao fato das pessoas se aproximarem das religiões, querendo uma santidade forçada, uma iluminação rápida, adotando uma capa para soterrar seu lado sombrio e os impulsos do inconsciente. A moral imposta, que se veste como uma armadura, para conter as pulsões humanas e não para usá-las, e quando necessário transformá-las, de maneira saudável e produtiva, acaba gerando uma legião de pessoas com voz adocicada e veneno no coração.

O caminho sincero da espiritualidade é autêntico, humano, gradativo, sem ostentação de falsa santidade, sem pretensão de súbita iluminação.

Kardec recomendava sermos homens (e mulheres) de bem. Integridade, sinceridade, respeito ao próximo, fraternidade… qualidades que podem ser cultivadas com cuidado, com paciência e sem exibicionismo. O que significa que o ser humano de bem é o que é, e não se esconde atrás de uma falsa imagem de si mesmo. E esse esconderijo pode ser uma inocente simulação de mansuetude, enquanto a pessoa está internamente espumando de raiva ou o extremo de uma vida de crimes hediondos por trás de uma batina ou de uma mediunidade. 

Outro aspecto importante é que em todas as tradições coexistem duas posturas diversas para a melhoria do ser humano. Há o caminho repressor, punitivo – aquele que enfatiza o ser como um pecador, caído, que precisa ser contido. E há o caminho que reconhece a divindade que mora em todos os seres e faz o trabalho de despertar a consciência, fazer jorrar algo de bom que ilumine e não trancafie o que é sombra – que necessariamente vai explodir mais à frente. A luz que habita em nós, se desenterrada, se parida, fulgura e dissolve a nossa própria sombra e se irradia pelo mundo. Lembrando Jesus: “Vós sois a luz do mundo!”

Dentro dessa perspectiva, mesmo os mais celerados e sombrios, o pior abusador ou o pior inquisidor, também podem ser acordados em sua consciência e fazerem nascer sua luz interior. Para visões reencarnacionistas, como a espírita, isso se fará no tempo das múltiplas vidas, mas se fará. Na visão da eternidade, o bem sempre vence e a luz sempre brilha acima.

Dora Incontri

Imagem: Marco A. C. Neves


Existe um Espiritismo Progressista?

Existe um Espiritismo Progressista?




por Dora Incontri

A palavra progressista é muito flexível e está sujeita aos contextos históricos em que for empregada. O que 50 anos atrás era algo progressista, hoje pode ter se tornado óbvio, já fazer parte do status quo e ter perdido toda a força emancipatória que possuía então. Entretanto, em cada dado momento histórico, podemos genericamente sempre definir como progressistas, ideias, setores religiosos, partidos, correntes que defendem avanços, mudanças – mais ou menos radicais – em relação ao que está dado, a uma estrutura vigente, ou a uma ideia hegemônica. Conservadores seriam aqueles setores que desejam a permanência das coisas como são ou até muitas vezes um retorno ao passado, que sempre olham com nostalgia. Alia-se à palavra progressista, a palavra esquerda, que não quer dizer necessariamente marxista, porque a esquerda é multifacetada e o termo nasceu ainda antes da Revolução Francesa, muito antes do próprio nascimento de Marx.

Podemos dizer que quando o espiritismo surgiu, primeiro nos Estados Unidos, a partir do famoso fenômeno das irmãs Fox e depois desenvolveu-se na França sob a liderança do educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, chamado de Allan Kardec, era uma ideia à esquerda, progressista, aliada a outras ideias de vanguarda na época. Estava em diálogo com socialistas utópicos – muitos dos quais, como Charles Fourier ou Jean Reynaud eram reencarnacionistas – era representado por mulheres feministas (já no primeiro momento nos EUA), era republicano, a favor da educação pública, laica, universal… ou seja, os primeiros espíritas não eram monarquistas, tradicionalistas, a favor dos privilégios aristocratas ou burgueses.

O próprio Kardec, para focar mais nessa personalidade que sintetiza o espiritismo trazido ao Brasil e cultivado entre nós, por aqueles que se dizem seus seguidores, era um homem que trabalhou durante anos pela educação das classes populares, pelo direito da mulher à educação (tendo se casado com uma mulher 9 anos mais velha do que ele, também intelectual e educadora), pela transformação da sociedade. Sabe-se hoje, por exemplo, que antes de se dedicar ao estudo dos fenômenos espíritas, Rivail manteve uma sociedade com Maurice Lachâtre, editor anarquista, num banco popular, que pretendia disponibilizar créditos para pessoas de baixa renda, favorecendo inclusive trocas de crédito, mercadorias e serviços. Uma ideia que poucos anos mais tarde seria conhecida como Banco do Povo, proposta pelo anarquista Proudhon.

Quando o espiritismo chega ao Brasil, encontra um solo predominantemente conservador, com uma tradição monarquista, jesuítica, distante das heranças pedagógicas que Kardec havia recebido, pelas mãos de seu mestre Pestalozzi, que por sua vez fora influenciado por Rousseau.

Aqui no Brasil, o espiritismo se enraizou, cresceu e nos tornamos o maior país espírita do mundo. Desde sempre, tivemos espíritas progressistas, como Eurípedes Barsanulfo, que em 1907, fundou uma escola em Sacramento, Minas Gerais, com tantos avanços pedagógicos para a época que o educador José Pacheco, da Escola da Ponte, o considera um dos maiores educadores do século XX. Tivemos Anália Franco, que esse ano completa o centenário de morte, abolicionista, republicana e feminista, que criou mais de 100 escolas-creches no Estado de São Paulo, profissionalizando e emancipando mães solteiras – que na época eram um escândalo na sociedade. Tivemos Maria Lacerda de Moura, espírita, anarquista e feminista, que militou pela educação e pelos movimentos sociais. Tivemos Herculano Pires, jornalista, escritor, filósofo, morto em 1979, que foi presidente do sindicato dos jornalistas em São Paulo, homem combativo, engajado em ideias sociais, em propostas pedagógicas e em diálogo com o existencialismo do seu tempo.

Mas, grande contingente de espíritas brasileiros, ainda afeitos ao catolicismo tradicional (não aquele da teologia de libertação), em sua maioria provindos da classe média, aferrou-se a um estilo religioso, conservador, à direita, de entender o espiritismo.

E como todos os movimentos de ideias, religiosas, filosóficas, políticas, há maneiras conservadoras e progressistas de se ler o espiritismo. Diríamos que a progressista tem mais a cara de seu fundador e de seus pioneiros, mas que a conversadora encontra respaldos em trechos do próprio Kardec, quando ele mesmo, dentro de seu contexto, reflete as limitações culturais da época. Nesse sentido, não consideramos Kardec uma espécie de bíblia sagrada do espiritismo. Embora ele seja a referência fundamental para os que se declaram seus seguidores, pode ser lido de maneira histórica, como ele mesmo propunha.

Em pleno século XXI, observa-se que os espíritas brasileiros, em sua maioria, criaram aqui uma nova tradição religiosa, sob a tutela de instituições, e se mantêm arraigados a ideias conservadoras.

Mas existe também, e de modo crescente, um grande contingente – não saberíamos agora quantificar, porque nenhuma pesquisa foi feita sobre o assunto – de espíritas progressistas, no sentido atual do termo.

Espíritas que têm uma posição crítica diante da sociedade em que vivemos, com suas injustiças, desigualdades, que estão dispostos a dialogar com setores progressistas de outras religiões e filosofias, que estão engajados em defender os direitos dos mais excluídos e discriminados.

É claro que espíritas conservadores e progressistas partilham dos mesmos princípios básicos do espiritismo: a existência de Deus, a reencarnação, a comunicação com os espíritos…

Mas a leitura de cada um desses princípios pode ganhar nuanças diversas: Deus pode ser visto como presente e imanente em todos nós, e ao mesmo tempo, presente em todo o universo, como inteligência amorosa, que nos dignifica a todas e todos, Deus pai e mãe, infinito no finito ou pode ser visto predominantemente como um Pai justiceiro, que castiga, um legislador inflexível e distante. A reencarnação pode ser interpretada como uma ideia emancipatória pela qual entendemos que cada espírito se faz a si mesmo, em interação com a coletividade, num projeto existencial através de múltiplas vidas, em liberdade e sem ideia de castigo ou tragédia, num entendimento de que mesmo o mal é um caminho de aprendizado e será superado. Mas a mesma ideia pode ser carregada de sentidos punitivos e a reencarnação vista como expiação cármica, como determinismo de sofrimento.  A comunicação com os Espíritos, dentro de uma visão que segue a proposta de Kardec é vista como algo natural, desierarquizado, dessacralizado, em que encarnados e desencarnados aprendem mutuamente na convivência mediúnica e os médiuns não são seres privilegiados, a serem ouvidos como oráculos, mas seres humanos comuns. Já os setores conservadores – e infelizmente hegemônicos – voltam aos atavismos religiosos milenares de submissão a gurus, sacerdotes e intermediários do sagrado – propiciando aliás, as tragédias que temos visto na mídia, de abusos, violências e má fé.

É claro que não podemos passar uma régua no movimento espírita e categorizar rigidamente progressistas e conservadores e criarmos um divisionismo insuperável entre aqueles que deveriam se considerar irmãos em ideias. Há nuanças de ambos os lados, as divisas não são precisas, há progressistas com aspectos conservadores, há conservadores com aberturas progressistas. Tudo é dialético e o ser humano é naturalmente contraditório. A nossa intenção – de espíritas assumidamente progressistas – é de chamar atenção mesmo para os que são conservadores e às vezes nem sabem que são, para a necessidade de deixarmos as visões estagnadas, retrógradas e dogmáticas e caminharmos dentro de um espírito mais libertário, crítico e que possa contribuir para as mudanças urgentes e necessárias desse mundo em convulsão.

Nessa coluna, que hoje inauguramos, de Espiritismo progressista, com minha particular visão libertária, nossas pautas serão essas – as das críticas, das mudanças, das revoluções (não armadas), das propostas engajadas. Escreverei eu e convidarei eventualmente companheiros na mesma sintonia.

Dora Incontri é escritora, doutora em Educação pela USP e coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.



Imagem: Marco A. C. Neves