Existe um Espiritismo Progressista?
por
Dora Incontri
A palavra
progressista é muito flexível e está sujeita aos contextos históricos em que
for empregada. O que 50 anos atrás era algo progressista, hoje pode ter se
tornado óbvio, já fazer parte do status quo e ter perdido toda a força
emancipatória que possuía então. Entretanto, em cada dado momento histórico,
podemos genericamente sempre definir como progressistas, ideias, setores
religiosos, partidos, correntes que defendem avanços, mudanças – mais ou menos
radicais – em relação ao que está dado, a uma estrutura vigente, ou a uma ideia
hegemônica. Conservadores seriam aqueles setores que desejam a permanência das
coisas como são ou até muitas vezes um retorno ao passado, que sempre olham com
nostalgia. Alia-se à palavra progressista, a palavra esquerda, que não quer
dizer necessariamente marxista, porque a esquerda é multifacetada e o termo
nasceu ainda antes da Revolução Francesa, muito antes do próprio nascimento de
Marx.
Podemos
dizer que quando o espiritismo surgiu, primeiro nos Estados Unidos, a partir do
famoso fenômeno das irmãs Fox e depois desenvolveu-se na França sob a liderança
do educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, chamado de Allan Kardec,
era uma ideia à esquerda, progressista, aliada a outras ideias de vanguarda na
época. Estava em diálogo com socialistas utópicos – muitos dos quais, como
Charles Fourier ou Jean Reynaud eram reencarnacionistas – era representado por
mulheres feministas (já no primeiro momento nos EUA), era republicano, a favor
da educação pública, laica, universal… ou seja, os primeiros espíritas não eram
monarquistas, tradicionalistas, a favor dos privilégios aristocratas ou
burgueses.
O próprio
Kardec, para focar mais nessa personalidade que sintetiza o espiritismo trazido
ao Brasil e cultivado entre nós, por aqueles que se dizem seus seguidores, era
um homem que trabalhou durante anos pela educação das classes populares, pelo
direito da mulher à educação (tendo se casado com uma mulher 9 anos mais velha
do que ele, também intelectual e educadora), pela transformação da sociedade.
Sabe-se hoje, por exemplo, que antes de se dedicar ao estudo dos fenômenos
espíritas, Rivail manteve uma sociedade com Maurice Lachâtre, editor
anarquista, num banco popular, que pretendia disponibilizar créditos para
pessoas de baixa renda, favorecendo inclusive trocas de crédito, mercadorias e
serviços. Uma ideia que poucos anos mais tarde seria conhecida como Banco do
Povo, proposta pelo anarquista Proudhon.
Quando o
espiritismo chega ao Brasil, encontra um solo predominantemente conservador,
com uma tradição monarquista, jesuítica, distante das heranças pedagógicas que
Kardec havia recebido, pelas mãos de seu mestre Pestalozzi, que por sua vez
fora influenciado por Rousseau.
Aqui no
Brasil, o espiritismo se enraizou, cresceu e nos tornamos o maior país espírita
do mundo. Desde sempre, tivemos espíritas progressistas, como Eurípedes
Barsanulfo, que em 1907, fundou uma escola em Sacramento, Minas Gerais, com
tantos avanços pedagógicos para a época que o educador José Pacheco, da Escola
da Ponte, o considera um dos maiores educadores do século XX. Tivemos Anália
Franco, que esse ano completa o centenário de morte, abolicionista, republicana
e feminista, que criou mais de 100 escolas-creches no Estado de São Paulo,
profissionalizando e emancipando mães solteiras – que na época eram um
escândalo na sociedade. Tivemos Maria Lacerda de Moura, espírita, anarquista e
feminista, que militou pela educação e pelos movimentos sociais. Tivemos
Herculano Pires, jornalista, escritor, filósofo, morto em 1979, que foi
presidente do sindicato dos jornalistas em São Paulo, homem combativo, engajado
em ideias sociais, em propostas pedagógicas e em diálogo com o existencialismo
do seu tempo.
Mas, grande
contingente de espíritas brasileiros, ainda afeitos ao catolicismo tradicional
(não aquele da teologia de libertação), em sua maioria provindos da classe
média, aferrou-se a um estilo religioso, conservador, à direita, de entender o
espiritismo.
E como
todos os movimentos de ideias, religiosas, filosóficas, políticas, há maneiras
conservadoras e progressistas de se ler o espiritismo. Diríamos que a
progressista tem mais a cara de seu fundador e de seus pioneiros, mas que a
conversadora encontra respaldos em trechos do próprio Kardec, quando ele mesmo,
dentro de seu contexto, reflete as limitações culturais da época. Nesse
sentido, não consideramos Kardec uma espécie de bíblia sagrada do espiritismo.
Embora ele seja a referência fundamental para os que se declaram seus
seguidores, pode ser lido de maneira histórica, como ele mesmo propunha.
Em pleno
século XXI, observa-se que os espíritas brasileiros, em sua maioria, criaram
aqui uma nova tradição religiosa, sob a tutela de instituições, e se mantêm
arraigados a ideias conservadoras.
Mas existe
também, e de modo crescente, um grande contingente – não saberíamos agora
quantificar, porque nenhuma pesquisa foi feita sobre o assunto – de espíritas
progressistas, no sentido atual do termo.
Espíritas
que têm uma posição crítica diante da sociedade em que vivemos, com suas
injustiças, desigualdades, que estão dispostos a dialogar com setores
progressistas de outras religiões e filosofias, que estão engajados em defender
os direitos dos mais excluídos e discriminados.
É claro que
espíritas conservadores e progressistas partilham dos mesmos princípios básicos
do espiritismo: a existência de Deus, a reencarnação, a comunicação com os
espíritos…
Mas a
leitura de cada um desses princípios pode ganhar nuanças diversas: Deus pode
ser visto como presente e imanente em todos nós, e ao mesmo tempo, presente em
todo o universo, como inteligência amorosa, que nos dignifica a todas e todos,
Deus pai e mãe, infinito no finito ou pode ser visto predominantemente como um
Pai justiceiro, que castiga, um legislador inflexível e distante. A
reencarnação pode ser interpretada como uma ideia emancipatória pela qual
entendemos que cada espírito se faz a si mesmo, em interação com a
coletividade, num projeto existencial através de múltiplas vidas, em liberdade
e sem ideia de castigo ou tragédia, num entendimento de que mesmo o mal é um
caminho de aprendizado e será superado. Mas a mesma ideia pode ser carregada de
sentidos punitivos e a reencarnação vista como expiação cármica, como determinismo
de sofrimento. A comunicação com os
Espíritos, dentro de uma visão que segue a proposta de Kardec é vista como algo
natural, desierarquizado, dessacralizado, em que encarnados e desencarnados
aprendem mutuamente na convivência mediúnica e os médiuns não são seres
privilegiados, a serem ouvidos como oráculos, mas seres humanos comuns. Já os
setores conservadores – e infelizmente hegemônicos – voltam aos atavismos
religiosos milenares de submissão a gurus, sacerdotes e intermediários do
sagrado – propiciando aliás, as tragédias que temos visto na mídia, de abusos,
violências e má fé.
É claro que
não podemos passar uma régua no movimento espírita e categorizar rigidamente
progressistas e conservadores e criarmos um divisionismo insuperável entre aqueles
que deveriam se considerar irmãos em ideias. Há nuanças de ambos os lados, as
divisas não são precisas, há progressistas com aspectos conservadores, há
conservadores com aberturas progressistas. Tudo é dialético e o ser humano é
naturalmente contraditório. A nossa intenção – de espíritas assumidamente
progressistas – é de chamar atenção mesmo para os que são conservadores e às
vezes nem sabem que são, para a necessidade de deixarmos as visões estagnadas,
retrógradas e dogmáticas e caminharmos dentro de um espírito mais libertário,
crítico e que possa contribuir para as mudanças urgentes e necessárias desse
mundo em convulsão.
Nessa
coluna, que hoje inauguramos, de Espiritismo progressista, com minha particular
visão libertária, nossas pautas serão essas – as das críticas, das mudanças,
das revoluções (não armadas), das propostas engajadas. Escreverei eu e
convidarei eventualmente companheiros na mesma sintonia.
Dora
Incontri é escritora, doutora em Educação pela USP e coordenadora geral da
Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
Imagem:
Marco A. C. Neves
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