Kardec, Raça e Ciência
O
espiritismo é uma doutrina em progresso. O espiritismo também é uma doutrina
pedagógica. É preciso considerar essas duas afirmações para um melhor
entendimento do espiritismo, pois se tivermos uma acepção de que o espiritismo
é algo pronto e acabado, não tem o que discutir, melhorar e nem mesmo modificar
quaisquer das ideias e teorias espíritas. É uma doutrina pedagógica porque
busca, principalmente, a melhoria da sociedade e dos indivíduos por meio da
educação, do diálogo e da busca pela verdade.
Assim como
os grandes gênios da humanidade, Kardec foi um homem de contradições.
Primeiramente há que considerar a Doutrina Espírita uma obra muito mais dele
que dos espíritos desencarnados. Foi ele quem tomou todas as ações de
pesquisar, que mensagens deveriam conter nas obras, quais foram os espíritos
escolhidos, quais eram os(as) médiuns de confiança e, mais que tudo,
desenvolveu a teoria espírita baseada em seu arcabouço teórico e histórico. A
genialidade de Kardec, entre outras coisas, se demonstra na capacidade que ele
teve de se deparar com o fenômeno espírita, oferecer uma compreensão de toda a
sua magnitude e buscar por toda a sua vida dar corpo pedagógico, tornando-o
simples para a humanidade.
Embora tudo
isso seja a sua essência, Kardec era um homem inserido em determinado contexto
e dele foi prisioneiro também. Em diversas oportunidades ele foi além de seu
tempo, tornando o mundo mais palpável e compreensível, uma vez que abriu o véu
da obscuridade e trouxe luz aos fenômenos sobrenaturais, naturalizando a
realidade espiritual.
Dito estes
pontos breves, introdutórios e importantes para o que se segue, vamos ao que
nos propomos para esse breve artigo. Antes, quero avisar que o texto é um pouco
duro. Não foi fácil escrevê-lo. Tenho em Kardec uma admiração gigante, foi por
conta dele que o espírito crítico se iniciou em mim, assim como a vontade de
estudar e ler ainda mais. Não foi fácil quando descobri que Kardec foi racista
e isso já tem mais de 20 anos, e depois de um tempo refletindo consegui compreender
que somos todos seres em evolução e a única coisa de Kardec que morreu em mim,
foi a sua sacralização, e nasceu um ser incrível e cheio de contradições, assim
como todos nós.
Kardec foi
racista! Sim, Kardec foi racista e isso tem um grau importante (e devastador)
em sua obra. Quem estuda Kardec em seus livros e textos, percebe que tudo
sempre foi pautado pela fraternidade e entendimento de que a educação é o meio
de transformação da sociedade; sempre buscou o respeito, a igualdade, a
liberdade e tudo o que pode engrandecer a vida humana. Um humanista nato. No
entanto…
O primeiro
texto[1] que exemplifica o racismo de Kardec é intitulado “A Perfectibilidade
da Raça Negra”, foi publicado na edição de abril de 1862 da Revista Espírita.
Esse texto é uma busca, por meio da Frenologia, de inserir a sociedade europeia
como o supra sumo do progresso humano à sua época. Eu poderia dizer, como
muitos já tentaram, que foi uma tentativa de compreender as diferenças sociais
por meio da Frenologia, mas como verão adiante, Kardec vai deixar claro a sua
predileção pela exaltação à sociedade europeia, mesmo que lance mão de ideias
absurdas.
Nesse
referido texto diz Kardec:
“Assim,
como organização física, os negros serão sempre os mesmos. Como Espíritos, são
inquestionavelmente uma raça inferior, isto é, primitiva. São verdadeiras
crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados
inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o
que já representa um progresso que levarão para outra existência, e que lhes
permitirá, mais tarde, tomar um envoltório de melhores condições.”[2]
A maneira
como Kardec se refere aos negros, assemelha-se a alguém relatando que está
levando um cachorro a um centro de adestramento para modificar alguns hábitos e
se comportar de acordo com o que estabelecemos como norma de conduta. Trazendo
para uma perspectiva de pensamento contemporâneo, há uma desumanização do
negro, em que se assemelha a animais que precisam ser domados para viverem em
sociedade.
Em outro
trecho do mesmo texto, ele diz:
“(…) a raça
negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá os níveis
das raças caucásicas, mas como Espíritos é outra coisa: pode tornar-se e
tornar-se-á aquilo que somos. Apenas necessitará de tempo e de melhores
instrumentos. Eis por que as raças selvagens, mesmo em contato com as raças
civilizadas, ficam sempre selvagens. Entretanto, à medida que as raças
civilizadas se desenvolvem, as selvagens diminuem, até o desaparecimento
completo, como desapareceram as raças dos caraíbas, dos guanches e outras. Os
corpos desapareceram, mas em que se transformaram os Espíritos? Alguns talvez
se achem entre nós.”[3]
Como se diz
no ditado popular, Kardec “morde e assopra”. Ao mesmo tempo em que rebaixa os
negros indicando que nunca alcançarão a evolução espiritual dos brancos
enquanto encarnados em corpos negros (por conta da constituição física), coloca
um fio de esperança na evolução espiritual, que é se transformar em um europeu
com as sucessivas reencarnações, branqueando a raça negra até o ponto em que
ela desapareça. Eugenia! Vale salientar que essa ideia de branqueamento da
população negra foi muito recorrente no século XIX, inclusive no Brasil, em que
o governo incentivava a miscigenação e a vinda de europeus para ocupar o Brasil
para branquear a população no intuito de ela se parecer mais com a europeia.
Além de cruel, evidencia uma percepção muito rasa e racista acerca das
diferentes culturas. Kardec ou não sabe, ou esconde o processo de
desaparecimento de sociedades nativas pelo mundo por meio de matanças
perpetradas pelos caucásicos europeus em busca de expandir seus comércios e de
dominar o mundo por meio da força e da escravidão. A escravidão existia também
na África, mas nenhum povo foi capaz de tornar a escravidão a maior fonte de
renda do que o Cáucaso. Com a dominação europeia os povos nativos eram mantidos
em escravidão e os brancos surravam, estupravam, matavam e torturavam
diariamente para manter a produção, enquanto em casa rezavam com a bíblia
próximos a uma mesa farta, produto dos seres humanos escravizados e famintos
que sofreram de tudo para que o cristão branco europeu pudesse deitar a cabeça
tranquilamente todas as noites. O civilizado branco foi o principal responsável
pelo extermínio de dezenas de povos nativos pelo mundo.
Neste
ponto, Kardec sofria ou de uma ignorância imensa, ou de um euro centrismo
patológico que não o deixou enxergar além do centro de Paris. Digo isso porque
várias pessoas ao escreverem sobre o racismo de Kardec pensam que Kardec nunca
viu um negro, que não havia negros na França, que só se sabia de notícias, mas
é um ledo engano.
Os negros
estão na Europa desde o final do século XV, não somente como serviçais, mas
também em outras profissões e sendo recebidos com respeito e honraria quando
enviados por franceses brancos de suas diversas colônias. Em 1687, o rei Luís
XIV recebeu um negro, designado por franceses dominicanos dizendo que se
tratava de um herdeiro do trono do reino de Assine (Costa do Marfim, África).
Tratado com honra real, ele foi batizado pelo bispo Bousset e teve como
padrinho o próprio rei. No final do século XVIII alguns poucos negros eram
enviados à Europa para estudar ou terem treinamento religioso.[4] Além disso,
era muito comum as famílias ricas terem serviçais negros(as) para todos os
tipos de trabalho. Então, Kardec não somente viu negros(as), mas teve
oportunidade de conhecer, conversar e aprender sobre as sociedades africanas,
pois a presença negra na França era comum.
Em agosto
de 1864, na Revista Espírita, Kardec também toca no assunto sobre a
superioridade da raça branca sobre as demais raças[5]. Na Revista Espírita de
fevereiro de 1867 na seção variedades, Kardec dispõe acerca de um homem negro,
cego e escravo que tinha aptidão de tocar qualquer música, uma vez tendo-a
escutado. Desde músicas populares até as mais difíceis músicas clássicas. Para
dar explicação à luz da Doutrina Espírita, Kardec diz que “como a raça negra em
geral, e sobretudo no estado de escravidão, não brilha pela cultura das artes,
há que concluir que o Espírito de Tom não pertence a essa raça, mas que nela se
encarnou como expiação ou como meio providencial de reabilitação dessa raça
(…)”. Mais adiante diz também que a Lei da Reencarnação vem trazer a
fraternidade universal e que é inconcebível que haja preconceito contra
qualquer pessoa.[6]
Em A
Gênese, Kardec utilizava como sempre, do conhecimento científico da época e
discorre dizendo que a espécie humana não teve um só princípio, mas diversos e
espalhados pelo globo. Exemplifica isso falando que as “diferentes” raças
tiveram origens próprias e de forma simultânea ou sucessivamente em diferentes
partes do mundo[7]. Até para criticar a versão bíblica acerca de Adão Kardec
diz que “Não se conceberia, pois, que esse tronco tenha tido como descendentes
povos numerosos e tão atrasados, de uma inteligência tão rudimentar, que
beiram, ainda em nossos dias, a animalidade” (grifos nossos).
Então,
vamos refletir um pouco… Kardec dizia que a raça negra estava na infância
espiritual, e em A Gênese diz que as raças surgiram simultaneamente ou
sucessivamente. Isso quer dizer que o corpo negro é destinado exclusivamente às
primeiras encarnações? Ou que espíritos escolhem ou são levados a reencarnar em
corpo negro por não ter inteligência e moral suficiente para encarnar em um
corpo branco? Ou que Deus escolheu corpos para sofrimento e corpos para
desfrutar da inteligência e da vivência com pessoas moralmente superiores?
Em que tudo
isso importa? Vamos começar pela influência dessas palavras de Kardec no
movimento espírita. É ainda recorrente centros espíritas que não aceitam ou
aceitam com ressalvas comunicações de pretos velhos, índios e outros espíritos
que se apresentam de maneira não convencionada como de confiança. Os espíritas
fazem esforços para se aproximar das religiões cristãs, ainda que contra a
vontade das igrejas cristãs, ao mesmo tempo que fazem esforços para se
distanciar das religiões de matriz africana, mesmo elas guardando algumas
semelhanças e sendo mais abertas que as cristãs. É comum os centros espíritas
apoiarem as artes que tenham influências europeias, como grupos harmônicos,
balés, corais, mas dificilmente apoiam grupos rítmicos, danças africanas e
cânticos indígenas. O Brasil é formado por cerca de 54% de negros e pardos, mas
apenas 30% dos espíritas se identificam como negros e pardos[8]. É um movimento
branco, de classe média, com renda e escolaridade acima da média do país. Mesmo
sendo 30% de negros e pardos, precisamos perguntar: quantos estão em cargos de
diretoria em centros espíritas? Quantos estão à frente de Federações Espíritas?
Quantos são os palestrantes negros que se destacam, que são estrelas do panteão
de palestrantes espíritas? Muitos vão exemplificar com as exceções, que vem
somente a corroborar com o fato de que, também no movimento espírita, há um
racismo estrutural.
Além disso
tudo, há um fato histórico que exemplifica esta questão. A Umbanda nasceu a
partir do preconceito de espíritas, quando Zélio de Moraes foi à Federação
Espírita de Niterói por apresentava problemas de saúde que ninguém sabia curar.
Uma vez na mesa mediúnica da referida federação, espíritos de negros escravos e
índios se apresentaram, mas foram convidados a se retirar pelo dirigente da
reunião por julgar que eram “espíritos atrasados”. Foi então que se manifestou
o espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas, proferindo um discurso de defesa dos
espíritos que se apresentaram, bem como das pessoas que eram discriminadas no
Brasil. Comunicou aos presentes na mesa que no dia seguinte seria instalada uma
religião que não teria discriminação e que todos seriam bem vindos[9].
Os diversos
movimentos espíritas precisam reconhecer que o racismo estrutural está presente
em seu seio, e que tem o dever cívico educar e de lutar contra, além educar a
população sobre a espiritualidade, que espírito não tem cor, nem sexo e que não
há sacralização de Kardec. Reconhece-se a grandiosidade de Kardec, assim como
se deve reconhecer este lapso de caráter nele, que provavelmente pela Lei de
Progresso já deve pensar muito diferente de há 150 anos.
Finalmente,
Kardec bem antenado ao movimento intelectual de sua época e num esforço para ir
além do que se podia, com a descoberta da realidade espiritual e suas
consequências, conseguiu ir um pouco além da ciência de sua época nesse ponto,
pois não via qualquer raça condenada a opressão, mas numa infância do progresso
espiritual. Apesar de tudo, dos pensadores europeus Kardec provavelmente foi
quem teve um olhar menos preconceituoso acerca dos negros. Nós temos um dever
cívico de continuar a debater o assunto e construir um espiritismo mais
antenado à ciência da atualidade, pois o codificador pensava que “o Espiritismo
jamais será superado, pois, se novas descobertas demonstrarem estar em erro em
um determinado ponto, ele se modificará sobre esse ponto”[10]. Além da
perspectiva científica, é uma questão ética apontar e compreender o racismo em
Kardec. Não é aceitável e devemos debater sobre o que fazer com os textos
escritos acerca do assunto. Como devem ser as notas de rodapé sobre isso?
Apenas explicando que era um pensamento comum à época, ou firmar posição contra
essa ideia de Kardec? Eu sou da opinião que as notas de rodapé não podem
somente dizer que era um pensamento comum à época dele, mas de afirmar que
essas ideias não coadunam com o pensamento espírita atual, que são
veementemente repudiadas e que Kardec estava ERRADO, sem medo de dizer. Então
espíritas, estamos prontos para modificar esse ponto, ou vamos passar pano em
Kardec e ter que dar explicações falaciosas de tempos em tempos?
Matheus
Laureano é Mestre em Psicologia Social, escritor, empresário e atual Presidente
da ASSEPE (www.assepe.org.br) <mattheuslaureano@gmail.com>
[1] Não
falarei do texto contido em Obras Póstumas, pelo simples fato de não ter sido publicado
por Kardec e por ele não diferir muito dos que foram contemplados neste artigo.
[2] Revista
Espírita, abril de 1862
[3] ibid.
[4] McCloy, Shelby T. Negroes and Mulattoes in
Eighteenth-Century France. The Journal of Negro History, Vol. 30, No. 3 (Jul.,
1945), pp. 276-292.
[5] Revista
Espírita, agosto de 1864.
[6] Revista
Espírita, fevereiro de 1867.
[7] A
Gênese. Cap. XI, Raça Adâmica. pp. 238-239. Edição conforme o texto original de
Allan Kardec da 1ª Edição de 1868.
[8] IBGE –
https://sidra.ibge.gov.br/Tabela/2094
[9] Rohde,
Bruno Faria. Umbanda, uma Religião que não Nasceu: Breves Considerações sobre
uma Tendência Dominante na Interpretação do Universo Umbandista. Revista de
Estudos da Religião. 2009, pp. 77-96
[10] A
Gênese, Cap I, 55, pp 71. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da
1ª Edição de 1868.
por
Matheus Laureano
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