domingo, 2 de abril de 2017

O Diálogo com os 'Mortos'

O Diálogo com os 'Mortos'





Podemos, portanto, estar convictos de que o objetivo dos gnósticos era o de ampliar continuamente o conhecimento, caminho da libertação, em oposição ao conceito dominante na Igreja de salvação coletiva, messiânica, com vistas a um reino alhures no céu. 

A busca, no entanto, exige metodologia previamente assentada, com suas prioridades e áreas de interesse bem definidas. O próprio Cristo perguntou certa vez aos que o ouviam o que buscavam, para advertir, por certo, de que a busca deve ter objeto específico e pressupõe escolhas adequadas.
No entender dos gnósticos, o objetivo final era a reunião com Deus, uma volta às origens, um retorno à remota condição primária de paz e harmonia, em dimensão onde, no poético dizer do Evangelho de Tomé, "a luz nasce de si mesma", ou seja, é incriada. Dali partira o ser humano, portador da fagulha divina, mas, de certa forma, separando-se de Deus, ao passo que antes era um com ele. Uma vez dividido e aprisionado na matéria, todo o seu esforço deveria concentrar-se em recuperar o estado primitivo de felicidade. 

Para isso, muito mais importante do que conhecer o mundo era conhecer a si mesmo, dado que é por aí que se aprende a conhecer Deus. 

A realidade espiritual constituía, assim, aspecto relevante no modelo mesmo da busca. É o que ressalta da leitura dos textos de Nag Hammadi. Os diálogos ali documentados desenvolvem-se basicamente com o Cristo póstumo, não ressurreto na posse de seu cadáver reanimado pelo milagre, mas o Cristo sobrevivente, na condição espiritual, movimentando-se num corpo sutil estruturado em luz própria, na viva demonstração do que sempre ensinara enquanto acoplado ao corpo físico. A realidade póstuma é, portanto, mediúnica, um intercâmbio entre 'vivos' e 'mortos', uma continuidade.
Como vimos, há pouco, Pedro parece ter sido dos primeiros e mais ativos médiuns (profetas) daqueles tempos iniciais, de vez que mesmo os canônicos se referem aos seus raptos de espírito, ou transes. Havia outros, porém. 
No Apócrifo de Tiago, ele interpela Jesus, já em sua condição espiritual, sobre como proceder ante as inúmeras solicitações que recebiam para que 'profetizassem', ou seja, recebessem os espíritos a fim de que pudessem os consulentes conversar com eles. "São muitos" - diz Tiago - "os que nos pedem e nos procuram com a intenção de ouvir um oráculo". 
 
Jesus responde de maneira enigmática, ao perguntar-lhes se eles não sabem que "a cabeça da profecia (mediunidade) foi cortada com João". Tiago não entende o significado da resposta e, mais uma vez, Jesus lembra que antes falava em parábolas e eles não o entendiam e que agora, mesmo falando abertamente, eles ainda não o entendem. 

Imagino que a alusão seja a João Batista que, por causa das suas faculdades mediúnicas (proféticas), teve a cabeça decepada, mas a correta interpretação é irrelevante neste ponto; o que importa é a evidência textual de que se disseminara a prática mediúnica no cristianismo primitivo, como, aliás, está abundantemente documentado também nos textos canônicos, especialmente em Atos dos Apóstolos e nas epístolas de Paulo. Tão difundida, que os médiuns atuantes eram assediados, como ainda hoje, por aqueles que desejavam conversar com os seus mortos.
No Tratado Tripartite, encontramos referência ao espírito manifestado que movimenta seu instrumento humano, usando-o "como mão e boca, como se a face lhe pertencesse". 

Mais adiante, no mesmo documento, nova referência, lembrando que "os profetas (....) não disseram nada por sua própria conta", mas do que viam e ouviam. Sugere-se até, nesta passagem, que algumas vezes Jesus, ainda na condição espiritual, antes de nascer, tenha falado "pela boca deles, dizendo que o Salvador viria".
No Apocalipse de Pedro é também explícita a conotação mediúnica, de vez que, concluída a dissertação, o documento encerra-se com esta frase: "Assim que ele (Jesus) disse estas coisas, ele (Pedro) voltou a si". 

Na Carta de Pedro a Felipe, como vimos há pouco, a fala de Pedro aos seus ouvintes converte-se, de repente, em manifestação mediúnica de "um espírito santo" que fala de Jesus com respeito, tratando-o como "aquele que nos ilumina".
No livro A Interpretação do Conhecimento, recomenda-se àquele que disponha de faculdades mediúnicas que a partilhe sem hesitação com seus companheiros, ou seja, exerça-a em proveito da coletividade. Pouco adiante recomenda o texto que não se perturbe o medianeiro a perguntar-se "por que ele (o espírito) fala e não eu?"
O comentário textual, revela, neste passo, sutil conhecimento do mecanismo da mediunidade, a explicar por que razão o 'profeta' não deve melindrar-se com o fato de alguém falar por seu intermédio, pois "o que ele diz é (também) seu, e aquele que discerne o Verbo e aquele que fala são o mesmo poder".

Se pesquisarmos Paulo, nas suas instruções aos coríntios, ficaremos sabendo que "o poder do espírito é o mesmo" (I Cor. 12,4-6). Se recorrermos aos ensinamentos de
O Livro dos Médiuns 5, de Allan Kardec, colhemos a informação de que a entidade utiliza-se, na manifestação falada ou escrita, dos recursos que encontra no próprio médium; logo, o que diz é também do médium, como assegura o texto gnóstico.
No Evangelho de Maria (Madalena, naturalmente), talvez estejam as mais claras, como também as mais controvertidas manifestações mediúnicas. É uma lástima que esse documento esteja tão seriamente mutilado por lhe faltarem as preciosas e últimas quatro páginas, como também algumas iniciais. 

Convém lembrar que, tanto quanto a de Pedro, a mediunidade de Madalena encontra-se bem documentada nos textos canónicos. Em primeiro lugar, porque sua carreira apostolar (e ela foi, de fato e de direito, apóstolo) começa com a chamada "expulsão dos demônios" (leia-se espíritos desarmonizados) que a perseguiam tenazmente, acoplados ao seu psiquismo, na condição de possessores, o que, por si só, seria suficiente para comprovar nela a existência de faculdades mediúnicas. É de supor-se que ela tenha conservado tais faculdades e as tenha exercido regularmente durante todo o tempo em que permaneceu no grupo. Pouco se sabe a respeito, dado que, como mulher - e ainda falaremos disso - eram escassas suas chances de participar ativamente dos trabalhos. 

A Dra. Pagels entende que Madalena foi "favorecida com visões e introvisões que, de muito, ultrapassam as de Pedro". 

Mesmo assim, no Evangelho de Tomé Pedro, propõe aos companheiros a exclusão de Madalena do grupo, de vez que "as mulheres não são dignas da vida".
Não há como ignorar, porém, o fato de que foi a ela que primeiro o Cristo sobrevivente manifestou-se na madrugada de domingo, no jardim de Nicodemos. Há indicações de que esse episódio teria até provocado certas ciumeiras entre os homens. O diálogo com o Cristo 'ressuscitado' nos canônicos ficou reduzido a uma breve troca de palavras circunstanciais, mas não escapa ao observador atento, como se lê em João (20,18), que "Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: '- Vi o Senhor', e as coisas que ele lhe disse".

Ao que tudo indica, o relato de tais 'coisas' de que Jesus falou a Madalena e que foram provavelmente amputadas no texto de João, sobreviveram no Evangelho de Maria. Realmente, segundo este livro, Maria faz longa exposição oral aos apóstolos sobre o que teria ouvido do Mestre, mas a acolhida é fria, para dizer o mínimo, no silêncio que se fez quando ela se calou.
André teria tomado a palavra para dizer que cada um pensasse o que quisesse sobre o que acabavam de ouvir.
Quanto a ele, contudo, não acreditava que o Salvador tivesse dito aquelas coisas, de vez que eram estranhas as ideias expostas. Pedro, segundo o texto, manifestou-se no mesmo sentido e acrescentou: 

Será que ele falou, de fato, em particular a uma mulher e não abertamente conosco? Será que temos de nos virar todos para ouvi-la? Será que ele a preferiu a nós?
Maria de Magdala respondeu mais com suas lágrimas do que com argumentos. Os argumentos podiam ser contestados, mas as lágrimas eram testemunho vivo de convincente autenticidade. É evidente que estava magoada, mas manteve-se digna, ao dirigir-se a Pedro, para dizer-lhe: 

Meu irmão Pedro, o que você acha? Você pensa que inventei isso em meu coração, ou que estou mentindo acerca do Salvador?
Toda a cena e as palavras nos transmitem pungente impressão de realismo. Criou-se um clima de constrangimento que Levi (Mateus) resolveu com notável habilidade na sua fala dirigida a Pedro.
Pedro, você sempre foi um cabeça quente. Vejo-o agora atacando a mulher como os adversários. Se, porém, o Salvador a achou digna, quem é, na verdade, você para rejeitá-la?
Seguramente, o Salvador a conhece muito bem. Por isso é que ele a amava mais do que a nós. 

Prosseguiu, expondo sua opinião de que deveriam todos envergonhar-se e saírem a pregar o evangelho, "sem estabelecer qualquer outra regra ou lei" além das que Jesus recomendara e que, falando mediunicamente a Madalena, reiterara.
A cena preservada no documento copta dá conta de um momento de rara importância no movimento nascente. 

Ao que se depreende, já se cuidava de implantar normas de procedimento que, se não contrariavam recomendações que Jesus deixara com os seus discípulos, acarretavam desvios que parece não terem agradado ao Mestre já na sua condição póstuma.
O texto é também revelador ao mostrar o relacionamento franco entre os membros da diminuta comunidade cristã e até a rudeza de expressas opiniões, mas também a predisposição ao entendimento harmonioso em torno do bem coletivo e da propagação da mensagem do Cristo. Nisso estavam todos de acordo, até mesmo na superação de muito humanas demonstrações de ciúmes na disputa pela preferência do Mestre.
Aliás, o Evangelho de Felipe, ao mencionar as pessoas que "sempre caminhavam com o Senhor", cita Maria, mãe dele, a irmã dela e Madalena "que era chamada sua companheira". 

Mais adiante, reitera-se a informação de que Madalena era a companheira de Jesus e que ele "a amava mais do que a todos os discípulos e costumava beijá-la na boca com frequência". 

Por isso, os discípulos chegaram a sentir-se 'ofendidos' e a manifestar-lhe sua desaprovação, interpelando-o. A resposta, apesar de um tanto enigmática, parece indicar que os discípulos testemunham o óbvio, mas não percebem implicações mais profundas. "Quando um cego e um vidente estão juntos na escuridão" - diz o Cristo - "não são diferentes um do outro. Quando a luz se faz, porém, o que enxerga verá a luz e o cego continuará na escuridão." Prossegue o Mestre ensinando que a superioridade do ser humano não é óbvia aos olhos, mas oculta. 

A cena pode até ter um núcleo genuíno, mas o documento como um todo apresenta incongruências e anacronismos que, no meu entender, denunciam elaboração ou manipulação posteriores. Não há como justificar o termo 'cristão' ou a expressão 'Espírito Santo' na fala de Jesus, a propósito da suposta interpelação dos discípulos. Apalavra cristão teria sido cunhada por Lucas, em Antioquia mais tarde, somente depois da partida de Jesus, e a expressão Espírito Santo é ainda posterior.
O que fica do episódio, no meu entender, é o fato de que a presença de Madalena junto ao Cristo suscitava demonstrações de ciúme, não só por causa das restrições que a época e os costumes impunham à mulher, mas porque os discípulos mais próximos a haviam precedido junto ao Mestre. 

Por outro lado, os textos sempre mostram Jesus disposto a justificar ou explicar sua preferência por ela, e até mesmo contribui com medidas que colocassem Madalena no nível que ele entendia adequado a ela. À observação inamistosa de Pedro que há pouco citamos, ele se declara decidido a prepará-la pessoalmente, "a fim de fazê-la homem, para que ela também se torne um espírito vivo, como vocês". (Examinaremos, mais de perto, em outro ponto deste livro, a dicotomia homem/mulher, aspecto relevante na doutrina gnóstica).

O que importa, contudo, no relato que acabamos de reproduzir, é a evidência bem mais convincente, mesmo porque convergente com outras passagens canónicas e apócrifas, de que a prática mediúnica generalizara-se no cristianismo primitivo em intenso intercâmbio com os 'mortos'. Vinham dos seres espirituais, por via mediúnica, instruções, recomendações, correções e estímulo aos que ficavam por mais algum tempo aprisionados em corpos físicos. 

Não apenas isso, porém. Esse intercâmbio assume as proporções de significativo marco naquele momento histórico. Acho que a Dra. Pagels tem toda razão em suspeitar de uma disputa pelo poder no contexto em que atuaram os gnósticos, no seu relacionamento com os demais cristãos. A Igreja nascente encontrava-se numa encruzilhada, ante opções que a Dra. Pagels situa como quantitativas ou qualitativas. Mais que isso, a hierarquia sacerdotal somente poderia abrir espaço próprio para as manipulações quantitativas que tinha em mente (leia-se poder temporal) à custa da eliminação dos chamados profetas (médiuns). 

Como percebe o leitor atento dos canónicos, os médiuns gozavam de indiscutível precedência sobre todos os demais membros da comunidade, à única exceção dos apóstolos, como estabelece a Primeira Carta aos Coríntios (12,28). Onde quer que chegassem, os médiuns eram recebidos com vivas demonstrações de respeito. Afinal de contas, era pela boca deles que falavam os espíritos, quando não o próprio Cristo.
Na presença deles, cessava o exercício de qualquer outra autoridade, exceto a dos apóstolos, se houvesse algum naquele momento na comunidade. As normas vigentes determinavam reservar-lhes as primícias das colheitas. Ora, a nascente casta sacerdotal não podia ver com bons olhos esse tratamento de exceção aos médiuns residentes ou itinerantes. 

Não é de admirar-se, pois, que, caracterizada a evidente preferência dos gnósticos pelas práticas mediúnicas, que os punham em diálogo constante com os espíritos, entrassem eles em colisão direta com a tendência oposta da hierarquia sacerdotal que lutava por acabar com essa prática, a fim de extinguir os privilégios considerados exorbitantes atribuídos aos médiuns. Voluntaria ou involuntariamente, estes impunham aos primeiros sacerdotes e aos bispos, a humilhação de um posto subalterno, numa época em que, sem mais apóstolos vivos, eles podiam perfeitamente consolidar-se no primeiro. 

Na breve introdução escrita para A Interpretação do Conhecimento a Dra. Pagels informa que o autor, mestre gnóstico, "dirige-se a uma comunidade dividida por ciúme e ódio sobre o problema das faculdades espirituais" (mediunidade). 

Seja como for, entre silenciar seus médiuns para não contrariar a casta sacerdotal e prosseguir com a busca do conhecimento, no intercâmbio com os espíritos, os gnósticos não hesitarão na opção. Caracterizava-se, com isto, o conflito e, por via de consequência, o posicionamento deles como heréticos, à medida em que mais e mais divergiam os dois grupos, tanto nas práticas, quanto ideologicamente.

Prescrutando, assim à distância, no tempo, depois de examinados os papiros de Nag Hammadi, creio legítimo concluir que o espaço das divergências ampliou-se mais porque a Igreja, e não os gnósticos, afastou-se, rumo às inovações teológicas e estruturais que desejava, para criar e consolidar um núcleo de poder político. Os gnósticos ficaram praticamente onde, como e com o que estavam: a busca do conhecimento libertador, as práticas mediúnicas, as prioridades espirituais qualitativas, em oposição ao poder terreno, que precisa da quantidade e prometia a salvação pela adesão ao sistema, sem o esforço do auto aperfeiçoamento.




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