O Diálogo com os 'Mortos'
Podemos,
portanto, estar convictos de que o objetivo dos gnósticos era o de ampliar
continuamente o conhecimento, caminho da libertação, em oposição ao conceito
dominante na Igreja de salvação coletiva, messiânica, com vistas a um reino
alhures no céu.
A busca, no
entanto, exige metodologia previamente assentada, com suas prioridades e áreas
de interesse bem definidas. O próprio Cristo perguntou certa vez aos que o ouviam
o que buscavam, para advertir, por certo, de que a busca deve ter objeto
específico e pressupõe escolhas adequadas.
No entender
dos gnósticos, o objetivo final era a reunião com Deus, uma volta às origens,
um retorno à remota condição primária de paz e harmonia, em dimensão onde, no
poético dizer do Evangelho de Tomé, "a luz nasce de si mesma", ou seja,
é incriada. Dali partira o ser humano, portador da fagulha divina, mas, de
certa forma, separando-se de Deus, ao passo que antes era um com ele. Uma vez
dividido e aprisionado na matéria, todo o seu esforço deveria concentrar-se em
recuperar o estado primitivo de felicidade.
Para isso,
muito mais importante do que conhecer o mundo era conhecer a si mesmo, dado que
é por aí que se aprende a conhecer Deus.
A realidade
espiritual constituía, assim, aspecto relevante no modelo mesmo da busca. É o
que ressalta da leitura dos textos de Nag Hammadi. Os diálogos ali documentados
desenvolvem-se basicamente com o Cristo póstumo, não ressurreto na posse de seu
cadáver reanimado pelo milagre, mas o Cristo sobrevivente, na condição
espiritual, movimentando-se num corpo sutil estruturado em luz própria, na viva
demonstração do que sempre ensinara enquanto acoplado ao corpo físico. A
realidade póstuma é, portanto, mediúnica, um intercâmbio entre 'vivos' e 'mortos',
uma continuidade.
Como vimos,
há pouco, Pedro parece ter sido dos primeiros e mais ativos médiuns (profetas)
daqueles tempos iniciais, de vez que mesmo os canônicos se referem aos seus raptos
de espírito, ou transes. Havia outros, porém.
No Apócrifo de Tiago,
ele interpela Jesus, já em sua condição espiritual, sobre como proceder ante as
inúmeras solicitações que recebiam para que 'profetizassem', ou seja,
recebessem os espíritos a fim de que pudessem os consulentes conversar com
eles. "São muitos" - diz Tiago - "os que nos pedem e nos procuram
com a intenção de ouvir um oráculo".
Jesus
responde de maneira enigmática, ao perguntar-lhes se eles não sabem que "a
cabeça da profecia (mediunidade) foi cortada com João". Tiago não entende
o significado da resposta e, mais uma vez, Jesus lembra que antes falava em parábolas
e eles não o entendiam e que agora, mesmo falando abertamente, eles ainda não o
entendem.
Imagino que
a alusão seja a João Batista que, por causa das suas faculdades mediúnicas
(proféticas), teve a cabeça decepada, mas a correta interpretação é irrelevante
neste ponto; o que importa é a evidência textual de que se disseminara a
prática mediúnica no cristianismo primitivo, como, aliás, está abundantemente
documentado também nos textos canônicos, especialmente em Atos dos Apóstolos e
nas epístolas de Paulo. Tão difundida, que os médiuns atuantes eram assediados,
como ainda hoje, por aqueles que desejavam conversar com os seus mortos.
No Tratado
Tripartite, encontramos referência ao espírito manifestado que movimenta seu
instrumento humano, usando-o "como mão e boca, como se a face lhe pertencesse".
Mais
adiante, no mesmo documento, nova referência, lembrando que "os profetas
(....) não disseram nada por sua própria conta", mas do que viam e ouviam.
Sugere-se até, nesta passagem, que algumas vezes Jesus, ainda na condição espiritual,
antes de nascer, tenha falado "pela boca deles, dizendo que o Salvador
viria".
No Apocalipse
de Pedro é também explícita a conotação mediúnica, de vez que, concluída a
dissertação, o documento encerra-se com esta frase: "Assim que ele (Jesus)
disse estas coisas, ele (Pedro) voltou a si".
Na Carta de
Pedro a Felipe, como vimos há pouco, a fala de Pedro aos seus ouvintes
converte-se, de repente, em manifestação mediúnica de "um espírito
santo" que fala de Jesus com respeito, tratando-o como "aquele que
nos ilumina".
No livro A Interpretação
do Conhecimento, recomenda-se àquele que disponha de faculdades mediúnicas que
a partilhe sem hesitação com seus companheiros, ou seja, exerça-a em proveito
da coletividade. Pouco adiante recomenda o texto que não se perturbe o
medianeiro a perguntar-se "por que ele (o espírito) fala e não eu?"
O comentário
textual, revela, neste passo, sutil conhecimento do mecanismo da mediunidade, a
explicar por que razão o 'profeta' não deve melindrar-se com o fato de alguém
falar por seu intermédio, pois "o que ele diz é (também) seu, e aquele que
discerne o Verbo e aquele que fala são o mesmo poder".
Se
pesquisarmos Paulo, nas suas instruções aos coríntios, ficaremos sabendo que
"o poder do espírito é o mesmo" (I Cor. 12,4-6). Se recorrermos aos
ensinamentos de
O Livro dos
Médiuns 5, de Allan Kardec, colhemos a informação de que a entidade utiliza-se,
na manifestação falada ou escrita, dos recursos que encontra no próprio médium;
logo, o que diz é também do médium, como assegura o texto gnóstico.
No Evangelho
de Maria (Madalena, naturalmente), talvez estejam as mais claras, como também
as mais controvertidas manifestações mediúnicas. É uma lástima que esse documento
esteja tão seriamente mutilado por lhe faltarem as preciosas e últimas quatro
páginas, como também algumas iniciais.
Convém
lembrar que, tanto quanto a de Pedro, a mediunidade de Madalena encontra-se bem
documentada nos textos canónicos. Em primeiro lugar, porque sua carreira apostolar
(e ela foi, de fato e de direito, apóstolo) começa com a chamada "expulsão
dos demônios" (leia-se espíritos desarmonizados) que a perseguiam
tenazmente, acoplados ao seu psiquismo, na condição de possessores, o que, por
si só, seria suficiente para comprovar nela a existência de faculdades
mediúnicas. É de supor-se que ela tenha conservado tais faculdades e as tenha
exercido regularmente durante todo o tempo em que permaneceu no grupo. Pouco se
sabe a respeito, dado que, como mulher - e ainda falaremos disso - eram
escassas suas chances de participar ativamente dos trabalhos.
A Dra.
Pagels entende que Madalena foi "favorecida com visões e introvisões que,
de muito, ultrapassam as de Pedro".
Mesmo assim,
no Evangelho de Tomé Pedro, propõe aos companheiros a exclusão de Madalena do
grupo, de vez que "as mulheres não são dignas da vida".
Não há como
ignorar, porém, o fato de que foi a ela que primeiro o Cristo sobrevivente
manifestou-se na madrugada de domingo, no jardim de Nicodemos. Há indicações de
que esse episódio teria até provocado certas ciumeiras entre os homens. O
diálogo com o Cristo 'ressuscitado' nos canônicos ficou reduzido a uma breve
troca de palavras circunstanciais, mas não escapa ao observador atento, como se
lê em João (20,18), que "Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: '- Vi
o Senhor', e as coisas que ele lhe disse".
Ao que tudo
indica, o relato de tais 'coisas' de que Jesus falou a Madalena e que foram
provavelmente amputadas no texto de João, sobreviveram no Evangelho de Maria. Realmente,
segundo este livro, Maria faz longa exposição oral aos apóstolos sobre o que
teria ouvido do Mestre, mas a acolhida é fria, para dizer o mínimo, no silêncio
que se fez quando ela se calou.
André teria
tomado a palavra para dizer que cada um pensasse o que quisesse sobre o que
acabavam de ouvir.
Quanto a
ele, contudo, não acreditava que o Salvador tivesse dito aquelas coisas, de vez
que eram estranhas as ideias expostas. Pedro, segundo o texto, manifestou-se no
mesmo sentido e acrescentou:
Será que ele
falou, de fato, em particular a uma mulher e não abertamente conosco? Será que
temos de nos virar todos para ouvi-la? Será que ele a preferiu a nós?
Maria de
Magdala respondeu mais com suas lágrimas do que com argumentos. Os argumentos
podiam ser contestados, mas as lágrimas eram testemunho vivo de convincente autenticidade.
É evidente que estava magoada, mas manteve-se digna, ao dirigir-se a Pedro,
para dizer-lhe:
Meu irmão
Pedro, o que você acha? Você pensa que inventei isso em meu coração, ou que
estou mentindo acerca do Salvador?
Toda a cena
e as palavras nos transmitem pungente impressão de realismo. Criou-se um clima
de constrangimento que Levi (Mateus) resolveu com notável habilidade na sua fala
dirigida a Pedro.
Pedro, você
sempre foi um cabeça quente. Vejo-o agora atacando a mulher como os
adversários. Se, porém, o Salvador a achou digna, quem é, na verdade, você para
rejeitá-la?
Seguramente,
o Salvador a conhece muito bem. Por isso é que ele a amava mais do que a nós.
Prosseguiu,
expondo sua opinião de que deveriam todos envergonhar-se e saírem a pregar o
evangelho, "sem estabelecer qualquer outra regra ou lei" além das que
Jesus recomendara e que, falando mediunicamente a Madalena, reiterara.
A cena
preservada no documento copta dá conta de um momento de rara importância no
movimento nascente.
Ao que se
depreende, já se cuidava de implantar normas de procedimento que, se não
contrariavam recomendações que Jesus deixara com os seus discípulos,
acarretavam desvios que parece não terem agradado ao Mestre já na sua condição póstuma.
O texto é
também revelador ao mostrar o relacionamento franco entre os membros da
diminuta comunidade cristã e até a rudeza de expressas opiniões, mas também a
predisposição ao entendimento harmonioso em torno do bem coletivo e da propagação
da mensagem do Cristo. Nisso estavam todos de acordo, até mesmo na superação de
muito humanas demonstrações de ciúmes na disputa pela preferência do Mestre.
Aliás, o Evangelho
de Felipe, ao mencionar as pessoas que "sempre caminhavam com o
Senhor", cita Maria, mãe dele, a irmã dela e Madalena "que era
chamada sua companheira".
Mais
adiante, reitera-se a informação de que Madalena era a companheira de Jesus e
que ele "a amava mais do que a todos os discípulos e costumava beijá-la na
boca com frequência".
Por isso, os
discípulos chegaram a sentir-se 'ofendidos' e a manifestar-lhe sua
desaprovação, interpelando-o. A resposta, apesar de um tanto enigmática, parece
indicar que os discípulos testemunham o óbvio, mas não percebem implicações
mais profundas. "Quando um cego e um vidente estão juntos na
escuridão" - diz o Cristo - "não são diferentes um do outro. Quando a
luz se faz, porém, o que enxerga verá a luz e o cego continuará na
escuridão." Prossegue o Mestre ensinando que a superioridade do ser humano
não é óbvia aos olhos, mas oculta.
A cena pode
até ter um núcleo genuíno, mas o documento como um todo apresenta
incongruências e anacronismos que, no meu entender, denunciam elaboração ou
manipulação posteriores. Não há como justificar o termo 'cristão' ou a expressão
'Espírito Santo' na fala de Jesus, a propósito da suposta interpelação dos
discípulos. Apalavra cristão teria sido cunhada por Lucas, em Antioquia mais
tarde, somente depois da partida de Jesus, e a expressão Espírito Santo é ainda
posterior.
O que fica
do episódio, no meu entender, é o fato de que a presença de Madalena junto ao
Cristo suscitava demonstrações de ciúme, não só por causa das restrições que a época
e os costumes impunham à mulher, mas porque os discípulos mais próximos a
haviam precedido junto ao Mestre.
Por outro
lado, os textos sempre mostram Jesus disposto a justificar ou explicar sua
preferência por ela, e até mesmo contribui com medidas que colocassem Madalena
no nível que ele entendia adequado a ela. À observação inamistosa de Pedro que
há pouco citamos, ele se declara decidido a prepará-la pessoalmente, "a
fim de fazê-la homem, para que ela também se torne um espírito vivo, como
vocês". (Examinaremos, mais de perto, em outro ponto deste livro, a dicotomia
homem/mulher, aspecto relevante na doutrina gnóstica).
O que
importa, contudo, no relato que acabamos de reproduzir, é a evidência bem mais
convincente, mesmo porque convergente com outras passagens canónicas e apócrifas,
de que a prática mediúnica generalizara-se no cristianismo primitivo em intenso
intercâmbio com os 'mortos'. Vinham dos seres espirituais, por via mediúnica, instruções,
recomendações, correções e estímulo aos que ficavam por mais algum tempo
aprisionados em corpos físicos.
Não apenas
isso, porém. Esse intercâmbio assume as proporções de significativo marco
naquele momento histórico. Acho que a Dra. Pagels tem toda razão em suspeitar de
uma disputa pelo poder no contexto em que atuaram os gnósticos, no seu
relacionamento com os demais cristãos. A Igreja nascente encontrava-se numa
encruzilhada, ante opções que a Dra. Pagels situa como quantitativas ou qualitativas.
Mais que isso, a hierarquia sacerdotal somente poderia abrir espaço próprio
para as manipulações quantitativas que tinha em mente (leia-se poder temporal)
à custa da eliminação dos chamados profetas (médiuns).
Como percebe
o leitor atento dos canónicos, os médiuns gozavam de indiscutível precedência
sobre todos os demais membros da comunidade, à única exceção dos apóstolos, como
estabelece a Primeira Carta aos Coríntios (12,28). Onde quer que chegassem, os
médiuns eram recebidos com vivas demonstrações de respeito. Afinal de contas,
era pela boca deles que falavam os espíritos, quando não o próprio Cristo.
Na presença
deles, cessava o exercício de qualquer outra autoridade, exceto a dos
apóstolos, se houvesse algum naquele momento na comunidade. As normas vigentes
determinavam reservar-lhes as primícias das colheitas. Ora, a nascente casta sacerdotal
não podia ver com bons olhos esse tratamento de exceção aos médiuns residentes
ou itinerantes.
Não é de
admirar-se, pois, que, caracterizada a evidente preferência dos gnósticos pelas
práticas mediúnicas, que os punham em diálogo constante com os espíritos, entrassem
eles em colisão direta com a tendência oposta da hierarquia sacerdotal que
lutava por acabar com essa prática, a fim de extinguir os privilégios
considerados exorbitantes atribuídos aos médiuns. Voluntaria ou involuntariamente,
estes impunham aos primeiros sacerdotes e aos bispos, a humilhação de um posto
subalterno, numa época em que, sem mais apóstolos vivos, eles podiam
perfeitamente consolidar-se no primeiro.
Na breve
introdução escrita para A Interpretação do Conhecimento a Dra. Pagels informa
que o autor, mestre gnóstico, "dirige-se a uma comunidade dividida por ciúme
e ódio sobre o problema das faculdades espirituais" (mediunidade).
Seja como
for, entre silenciar seus médiuns para não contrariar a casta sacerdotal e
prosseguir com a busca do conhecimento, no intercâmbio com os espíritos, os gnósticos
não hesitarão na opção. Caracterizava-se, com isto, o conflito e, por via de consequência,
o posicionamento deles como heréticos, à medida em que mais e mais divergiam os
dois grupos, tanto nas práticas, quanto ideologicamente.
Prescrutando,
assim à distância, no tempo, depois de examinados os papiros de Nag Hammadi,
creio legítimo concluir que o espaço das divergências ampliou-se mais porque a
Igreja, e não os gnósticos, afastou-se, rumo às inovações teológicas e
estruturais que desejava, para criar e consolidar um núcleo de poder político.
Os gnósticos ficaram praticamente onde, como e com o que estavam: a busca do conhecimento
libertador, as práticas mediúnicas, as prioridades espirituais qualitativas, em
oposição ao poder terreno, que precisa da quantidade e prometia a salvação pela
adesão ao sistema, sem o esforço do auto aperfeiçoamento.
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