Entre a pureza da ortodoxia e a salada
mística:
O que estamos fazendo com o
Espiritismo?
por Dora
Incontri
Vários
articulistas já manifestaram aqui suas posições a respeito desse polêmico
assunto: pureza doutrinária. Chegou a minha vez de dizer algo a respeito.
Em primeiro
lugar, é preciso esclarecer (ou resgatar) alguns conceitos básicos do
Espiritismo: Não se trata de uma revelação sagrada, por isso considero muito
problemática a denominação das obras de Kardec de o “pentateuco espírita”! Os
livros de Kardec não são como a Bíblia é para os fundamentalistas cristãos –
palavra de Deus, revelada, que pode ser citada como fonte de autoridade
absoluta. A obra de Kardec é de pesquisa, em que encarnados e desencarnados
participaram da construção. Justamente uma das grandes contribuições de Kardec
foi de sacralizar a revelação. E ele fez isso estabelecendo um método de
pesquisa dos fenômenos espíritas, uma abordagem nova da vida espiritual, com
racionalidade crítica e observação empírica. Então, conservar-se fiel à obra de
Kardec é muito mais conhecer, entender, aprofundar e mesmo desdobrar com os
recursos atuais, o método criado por ele (e foi criado por ele e não pelos
Espíritos! Esses são na verdade ao mesmo tempo o objeto de estudo e os
cooperadores de Kardec). O conteúdo do Espiritismo está sujeito à revisão,
reelaboração e leituras históricas (compreendendo que algumas coisas que estão
nas obras de Kardec são próprias do século XIX, têm uma influência da cultura
europeia da época). O próprio fundador do Espiritismo não o queria fechado, num
corpo de dogmas, a que leitores futuros teriam que se submeter cegamente.
O tempo
inteiro, Kardec alerta para o aspecto científico de sua proposta, cujas
hipóteses poderiam ser revistas.
Mas é claro
que encarar o Espiritismo como um pensamento aberto, em constante construção,
porque se trata de um pensamento racional, científico, sempre pronto ao diálogo
com as descobertas da ciência e com os avanços culturais, não significa fazer
dele uma colcha de retalhos, uma salada mística, incorporando modismos,
novidades sem fundamento, práticas bizarras e ideias irracionais…
Então,
podemos dizer a grosso modo que temos duas tendências predominantes no
movimento espírita brasileiro atual:
Dos
ortodoxos – vamos chamá-los assim – que não compreenderam o caráter dinâmico e
aberto do Espiritismo (e muitos não compreenderam também o caráter fraterno da
doutrina) e usam os textos de Kardec como argumento de autoridade, consideram
suas obras como uma Bíblia. Esses ortodoxos, que estão dentro das instituições
estabelecidas “como movimento oficial” são em geral pessoas avessas ao diálogo,
praticam a censura, a exclusão, não aceitam nenhum tipo de pensamento crítico e
fazem uma reprodução pobre, descontextualizada, reacionária do texto de Kardec
– que se torna um texto apostilado, interpretado apenas por um viés religioso,
com muito pouca articulação racional e nenhum enraizamento científico.
Devo dizer
que nós, da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, apesar de mantermos um
forte apelo à volta a Kardec, na linha de Herculano Pires, que temos um
compromisso com pesquisa, filosofia e uma ética espírita, somos muitas vezes
hostilizados ou silenciosamente excluídos por essa facção oficial, que se
pretende ortodoxa. Meus livros são censurados em muitos centros espíritas, a
ABPE não é chamada a participar de grandes eventos federativos para falarmos
sobre Educação, quando nós somos a entidade especializada no assunto, com uma
produção reconhecida, inclusive academicamente. Mas somos críticos. E para esse
lado do movimento, quem critica é polêmico, persona non grata. E assim,
o Espiritismo vai se tornando nas mãos no movimento institucional, mais uma
religião fechada, sem nenhum avanço.
Do outro
lado, estão os adeptos do vale-tudo. New Age, autoajuda, cristais, livros
mediúnicos com revelações estapafúrdias etc. É a salada mística. Para esses,
atualizar Kardec é simplesmente esquecê-lo, ignorando seus critérios de
racionalidade, coerência e busca metódica da verdade. Mas é claro que esses
criticam os ortodoxos e os ortodoxos os excluem sem pena.
E quais as
motivações emocionais, inconscientes (ou conscientes) que estão por trás dos
dois grupos?
No primeiro,
a motivação é o poder – querem um movimento hierarquizado, que não debate, que
não dá espaço para contestação (por mais qualificada que seja a pessoa que
conteste), que se mantém sempre acrítico – e devo dizer, que embora esses se
digam os reais seguidores de Kardec, não o compreenderam nem pela rama, pois
falta de diálogo é falta de humildade, falta de criticidade é dogmatismo,
exclusão é falta de fraternidade. Portanto, nada disso é espírita.
No segundo
grupo, a motivação é o comércio: médiuns que viram terapeutas holísticos,
médiuns que se pretendem gurus em todos os assuntos, livros que vendem às
pencas nas grandes redes de livrarias e que mais parecem ficção científica de
mau gosto do que obras mediúnicas sérias, comprometidas com o esclarecimento e
a edificação dos leitores.
Então, logo
se vê que, como dizia Kardec: contra interesses, não há fatos que convençam.
Quando a motivação é o poder, a vaidade, a projeção pessoal ou o lucro
financeiro, pura e simplesmente, não há verdadeiro amor ao Espiritismo, sincera
busca da verdade, esforço sacrificial pela ideia, trabalho sério e profundo –
mas de ambos os lados reina a mediocridade.
É claro que
tudo isso faz parte do contexto em que vivemos no momento. Todos os movimentos
religiosos e espiritualistas têm alas fundamentalistas e alas de autoajuda
light. Tem aqueles que desejam reter o movimento numa redoma de ideias fechadas
e os que querem abrir, sem nenhum critério, a não ser o critério comercial.
Isso tudo em
relação às posições existentes no momento espírita atual. Há muitos
desgarrados, insatisfeitos, críticos em relação a ambos os lados e são para
essas pessoas que nós, da ABPE, temos oferecido uma alternativa que não se
pretende nem dogmática, nem superficial e descomprometida com a verdade (ou a
sua busca, pois estamos ainda muito aquém de verdades definitivas).
Há duas
coisas que deveriam unir todos os espíritas: o elo de fraternidade e o
compromisso com a busca isenta e desinteressada da verdade – podemos nos
enganar, e as verdades por enquanto são relativas, mas por isso mesmo, temos
que aprender a dialogar com o outro e temos que fazer um processo de
autoconhecimento (aconselho inclusive com terapia) para observarmos em nós as
paixões, as inclinações, as motivações obscuras que possam estar nos guiando em
nossas atitudes em relação a essa ideia tão bela e fecunda, tão libertária e
progressista, que se chama Espiritismo.
Portanto,
nem pureza ortodoxa, nem salada mística, mas estudo sério, aprofundado das
obras de Kardec, diálogo aberto, civilizado, amistoso, desinteresse real,
fraternidade – eis o que proponho aqui, para encerrar por enquanto, esse debate
em nosso blog.
*Retirado,
com autorização da autora Dora Incontri, do blog da Associação Brasileira de
Pedagogia Espírita
Imagem: Marco A. C. Neves
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