Karollyne
e o abrigo de cães mantido por moradores de rua
Publicado no The Intercept
A APROXIMADAMENTE SETE MINUTOS de carro
da minha casa, descendo a estrada que corta a Floresta da Tijuca, no Rio de
Janeiro, fica um acampamento em que moram diversas famílias desabrigadas. Como
fica atrás de um muro, não é possível ver as barracas da rua. Mas o que
quase sempre se nota ao passar de carro é um batalhão de cães nas mais
variadas circunstâncias, brincando ou cochilando, em frente ao muro.
Ao longo dos anos, vi essa matilha inúmeras
vezes. Sempre me intrigou o fato deles estarem obviamente bem alimentados e
cuidados, embora evidentemente vivessem na rua. O número exato de cães também
era um mistério. Era possível notar novos cachorros no grupo a cada vez que se
passava pelo muro.
Como pude depois comprovar, as vidas por trás
desse muro são incríveis. Além disso, são objeto central de Karollyne,
a segunda parte do filme de Heloísa Passos para Field of Vision sobre
desabrigados cariocas e seus cachorros. (A primeira parte, Passarinho, foi
publicada na semana passada.) Em 2009, Karollyne, uma transexual negra, se
mudou para essa construção decadente e abandonada. Ela convidou uma de suas
amigas desabrigadas, outra mulher transexual, para morar na mesma casa. Desde
então, elas conheceram homens que consideram serem seus maridos e lá moram com
elas. Os dois casais agora receberam mais três amigos, formando uma família de
sete pessoas muito unidas.
Juntos, eles cuidam de 19 cachorros e 4
gatos. Todos os animais foram encontrados na rua,
geralmente abandonados na floresta. Karollyne e seu grupo os trouxeram
para casa ao encontrá-los sofrendo em diversos graus de agonia, fome, trauma e
doença. “Não consigo ver um animal sofrendo, sabendo que posso ajudá-lo, e simplesmente
dar as costas”, conta Karollyne. O fato de ser desabrigada e ter
dificuldade em sobreviver com o pouco que tem não parece abalar sua crença em
“poder ajudar” esses animais. “Sacrifico o que posso para ajudá-los e sei que
ofereço uma vida confortável para eles”.
Ao visitar o alojamento, qualquer dúvida a
respeito da afirmação acima é instantaneamente esclarecida. De fato, os animais
são todos limpos e bem alimentados. Os cachorros têm amplo espaço para
explorar, correr e brincar. Os gatos, sendo gatos, encontram pontos elevados
para observar tudo de cima, descendo ao nível dos cachorros ocasionalmente para
se socializar, mantendo a pompa de realeza ao desfilar entre seus súditos. O
grupo é calmo e bem comportado, mesmo com a chegada de um estranho. Há diversos
pratos cheios de comida de cachorro e gato, além de baldes transbordando com
água fresca. Em lugar da carência e do caos esperados, há equilíbrio e uma
evidente satisfação coletiva.
A vida de Karollyne foi marcada por um
sofrimento constante e dificuldades inimagináveis: o abuso sexual durante a
infância, a prisão durante a adolescência, o assédio por ser uma mulher
transexual. Tudo isso aconteceu durante os anos em que morou nas ruas. Em vez
de cultivar amargura e auto piedade, essas experiências criaram uma empatia
extraordinária frente ao sofrimento de outros seres vivos. “Minha felicidade
vem de cuidar de todos os animais que estejam sofrendo: cachorros, gatos,
macacos”, disse Karollyne. “Tentamos alimentar e cuidar de todos eles
aqui. É meu propósito na vida”.
O único momento em que Karollyne expressa
raiva é quando fala de pessoas que abandonam os animais de que ela cuida com a
ajuda da família. “Pessoas ricas vêm e largam seus cachorros aqui para morrerem
de fome. Como alguém pode ser tão cruel?” Pessoas desabrigadas são
habitualmente julgadas e condenadas pela mentalidade burguesa. Mas a outra face
dessa dinâmica é surpreendente: um grupo de pessoas que não tem quase nada e
que, literalmente, não sabe de onde virá sua próxima refeição, assume um compromisso
violado por aqueles que têm tudo. “Não sei como eles conseguem dormir
depois de fazerem isso”, ela questiona.
Quando visitei o acampamento para mostrar a
versão final do filme, Karollyne, seu marido e um de seus amigos me encontraram
ainda na rua e insistiram em me mostrar algo: o último cachorro que socorreram
desde o fim das filmagens. Um poodle branco de aproximadamente um ano de idade
tinha sido abandonado na floresta e foi encontrado por ele três semanas antes.
“Quando o encontramos, ele estava quase morrendo: muito magro, cheio de pulgas,
sem energia e com um olhar distante”, disse Karollyne. O cachorro
brincalhão, enérgico, simpático e muito bem cuidado que eles me apresentaram é
prova do carinho e atenção constantes dados ao cão desde que chegou à
casa. Todos falavam como pais orgulhosos, contando de forma animada e
detalhada sobre os amigos que o cachorro havia feito no grupo e as dificuldades
que ainda encontra.
Como mostra o filme, o mundo construído por
Karollyne e sua grande família é extraordinário em diversos aspectos. Além
disso, revela um modelo extremamente promissor. Em muitas cidades, há projetos
criados para ajudar desabrigados e projetos dedicados a animais abandonados. O
acampamento por eles criado cumpre as duas funções ao mesmo tempo. Não apenas
socorre animais, como oferece aos indivíduos marginalizados pela sociedade um
trabalho gratificante e enriquecedor. Trabalhar neste artigo e no filme,
bem como o abrigo informal de Karollyne, inspirou este conceito: abrigos de animais
administrados por desabrigados que amem animais. A história de Karollyne deixa
claro o potencial de um projeto como esse.
Glenn Greenwald
✉glenn.greenwald@theintercept.com
t@ggreenwald
Link: http://oespiritualismoocidental.blogspot.com.br/2016/12/karollyne-e-o-abrigo-de-caes-mantido.html
Imagem: http://oespiritualismoocidental.blogspot.com.br/2016/12/karollyne-e-o-abrigo-de-caes-mantido.html
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