A Ciência Espírita
Como já mencionamos em
dois textos publicados aqui no Jornal GGN[1], o Espiritismo
tem três vertentes: científica, filosófica e moral ou religiosa, que estão
intimamente interligadas.
Essa inter-relação é mais
clara hoje do que no século XVIII, quando predominava com mais força o
reducionismo racionalista e cartesiano de Descartes e, assim, havia uma sede
por separações, classificações e métodos de conhecimento afins, que facilitam a
compreensão, mas, sem uma complexa e dinâmica visão sobre o fenômeno, também
geram diversas confusões.
Claramente, a vertente
moral do Espiritismo, por ser o seu cerne e por exigir menos conhecimento
intelectual no seu entendimento superficial, se desenvolveu muito mais no
Brasil. É preciso estar atento, todavia, para o fato de que o Espiritismo, tal
como codificado por Kardec, não buscava exercer um papel propriamente religioso.
Kardec afirma, no
Preâmbulo do livro “O que é Espiritismo?”, o seguinte:
“O Espiritismo é, ao mesmo
tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência
prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos;
como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas
mesmas relações”.[2].
Como se nota, Kardec não
falava no Espiritismo como religião, situando a sua parte moral dentro da
filosófica, pois, de fato, a moral sempre foi um dos principais problemas da
filosofia, desde os gregos, e assim também o era no século XIX.
Na Revista Espírita de
dezembro de 1868[3], em
transcrição de um discurso intitulado “O Espiritismo é uma religião?”, Kardec
deixa claríssimo que, se definida “religião”, do ponto de vista filosófico,
como aquilo que gera um laço moral entre os homens, o Espiritismo é uma
religião:
“Se é assim, perguntarão,
então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido
filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto,
porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de
pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as
próprias leis da Natureza”.
Logo em seguida, contudo,
Kardec explica porque não define, em regra, o Espiritismo como uma religião:
“Por que, então, temos
declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão uma
palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a
palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente uma
idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma
religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se
quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu
cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das
idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se
levantou”.
No item 8, do Capítulo I,
do Evangelho segundo o Espiritismo[4], Kardec
sustenta que a inteligência humana separou indevidamente ciência como o estudo
da matéria e religião como o estudo do que é metafísico, mas que é preciso religar
essas visões, interpenetrá-las.
O conhecimento é um só.
Quando se diz que é preciso fortalecer o aspecto científico do Espiritismo, não
se quer dizer que ele é mais importante do que o moral, mas que um pilar de
sustentação do mesmo pensamento está mais fraco do que o outro e que o
fortalecimento de cada um depende da solidez do outro.
A difusão da perspectiva
religiosa do Espiritismo pode ser atribuída mais a Emmanuel, espírito guia de
Chico Xavier, do que ao próprio Kardec. Não é à toa que Emmanuel era um
espírito com forte crença no poder da religião e do rigor, o que provavelmente
tem a ver, como causa e efeito, com suas diferentes encarnações como
religioso.
No livro “O Consolador”,
de Chico Xavier, é mencionado que Emmanuel fez a seguinte afirmação:
“A ciência e a Filosofia
vinculam à Terra essa figura simbólica, porém, a Religião é o ângulo divino que
a liga ao céu. No seu aspecto científico e filosófico, a doutrina será sempre
um campo nobre de investigações humanas, como outros movimentos coletivos, de
natureza intelectual, que visam o aperfeiçoamento da Humanidade. No aspecto
religioso, todavia, repousa a sua grandeza divina, por constituir a restauração
do Evangelho de Jesus-Cristo, estabelecendo a renovação definitiva do homem,
para a grandeza do seu imenso futuro espiritual.””[5]
Quando Emmanuel se referia
a essa importância da religião, pelo que se pode entender, talvez estivesse
pensando no mesmo que Kardec quando tratava da relevância do estudo da moral
espírita por meio da filosofia. É preciso, portanto, tomar muito cuidado com
definições e com a atribuição de maior importância a um dos aspectos do
Espiritismo, quando eles, na verdade, estão muito bem interligados.
A religião - tal como
normalmente praticada na Terra, repleta de rituais, proibições e reprimendas -
é criação dos homens, e não de espíritos elevados. O Espiritismo não tem
rituais de batismo, primeira comunhão, casamento, extrema-unção, adoração,
confissão, perdão pela repetição de “x” rezas etc. Aliás, muitas distorções do
Espiritismo, como a visão de culpa, de um Deus que castiga e tantas outras
ainda decorrem da tradição religiosa existente no mundo.
O Espiritismo também
termina se confundindo com as religiões tradicionais por ter como base os
ensinamentos de Jesus Cristo e por muitos dos seus adeptos terem sido
religiosos que se desiludiram com suas respectivas religiões.
Como lembra Haroldo Dutra
Dias[6], a lei da
natureza é uma só. O que se chama de “moral” é apenas uma forma humana de
expressar aquilo que diz respeito ao bom agir, mas é consequência das mesmas
leis que definem, por exemplo, a atração, vista como uma lei natural. Mas, se
agir com amor leva à atração de mais amor e, portanto, de outros seres humanos
dispostos a amar e a serem amados, como separar o moral do natural, se não for
apenas para efeitos didáticos?
Não se percebendo essas
questões e não se aprofundando na intelectualidade científica e filosófica do
Espiritismo, fica muito mais difícil compreender quais são as leis morais e
como segui-las para que se obtenha mais felicidade, pois amor, humildade e
caridade são sentimentos sobre os quais quase todos falam e julgam ser seus
praticantes mais fiéis. A fé, quando não pautada na razão, se torna guia de
menor utilidade, perigosa e pode levar ao fanatismo.
Um dos grandes méritos do
Espiritismo é explicar racionalmente como esses sentimentos se manifestam em
ações e que tipos de ações devem ser tomadas nos mais diversos contextos, que
sugerem muitas vezes a necessidade de uma tomada de posição complexa em meio a
diretrizes aparentemente contraditórias ou paradoxais.
Quanto a ciência e
filosofia, a interconexão delas é tema de estudo antigo fora do Espiritismo. O
reducionismo separou aquele conhecimento mais afirmativo, que se experimenta e
sobre o que se pretende encontrar verdades por meio de teorias testadas,
daquele que é mais questionador, reflexivo, que se testa apenas pela razão e
pela intuição.
No final das contas,
ciência sem filosofia é um conjunto de teorias frias, com pouca capacidade de
trazer o progresso por falta de um profundo questionamento crítico, e filosofia
sem ciência é um conjunto de abstrações soltas, sem grande aderência à prática,
sem experimentação.
Com o intuito de realizar
a tarefa de difusão da Boa Nova, o Espiritismo deve ter muito cuidado com a
tradição religiosa humana, servindo às religiões como uma ferramenta de sua
reconstrução, como a grande ciência (e filosofia) de compreensão das leis menos
explícitas da natureza (naturais e morais) por meio do estudo técnico,
cuidadoso, metódico dos fenômenos espirituais e dos ensinamentos obtidos por
meio deles.
Muitos indivíduos veem a
religião com preconceito e, por estarem apegados à matéria, ainda que uma boa
parte tenha predisposição para desapegar dela se receberem os incentivos
adequados, não dão importância a ensinamentos morais, especialmente se pautados
em Jesus Cristo e outros seres ligados às religiões tradicionais, que não
estejam suportados por argumentos bastante racionais.
Outras pessoas são muito
apegadas a uma religião específica e têm dificuldades de serem atraídas por
outra doutrina predominantemente religiosa.
Para cumprir a tarefa dada
por Jesus aos espíritas de difundir a Boa Nova, que é claramente lembrada em
toda a obra de Kardec, sobretudo no Evangelho segundo o Espiritismo[7],é preciso
desenvolver melhor as vertentes científica e filosófica do Espiritismo,
buscando conversar com cada pessoa conforme a sua bagagem moral e
intelectual.
Com mais suporte
científico e filosófico, torna-se mais fácil o trabalho nos centros espíritas,
pois estarão mais bem subsidiados em estudos cuidadosos, aprofundados, que
sigam os métodos definidos por Kardec e, quem sabe, até possam avançar neles,
pois é preciso lembrar que, de lá para cá, se passaram mais ou menos 160 anos e
o conhecimento progrediu enormemente.
Os espíritas não podem se
prostrar como adoradores do codificador. Como tudo progride, o Espiritismo
também deve progredir. Essa era a vontade do próprio Kardec, como ele deixa
claro em diversas passagens. Seguem, então, algumas propostas para os seus
desenvolvedores e difusores.
É preciso falar mais sobre
Espiritismo para quem não é espírita, utilizando, como propunha Kardec no
início do Livro dos Médiuns[8], o discurso mais apropriado para cada
tipo de destinatário. Pode ser mais difícil convencer um fanático religioso a
mudar de religião do que a acreditar em fenômenos suportados pela ciência,
assim como pode ser mais fácil convencer um religioso cristão com coração
aberto e pouco conhecimento científico por meio de aspectos morais e da
doutrina de Jesus, com base em argumentos racionais, do que por engenhosas
teorias científicas, como a quântica.
Os espíritas devem falar
menos em “doutrina”, uma palavra que provavelmente fazia muito mais sentido na
França à época de Kardec do que hoje no Brasil e mesmo em outros países. O termo
“doutrina”, salvo em raros círculos, é pouco utilizado na Língua Portuguesa e
mesmo na Língua Inglesa, e, ainda pior, costuma se associar a uma ideia de
doutrinação, o que tende a “fechar” o destinatário da mensagem.
Seria mais convincente que
se falasse em Ciência Espírita, como o próprio Kardec não cansava de repetir e
que não é nenhum exagero.
A má definição do que
seria “ciência” tem gerado confusões nas últimas décadas. Os economistas, por
exemplo, reconhecendo seus erros e dos seus colegas, têm dito que a Economia
não deve ser tida por uma ciência, uma vez que não observa fatos
naturais.
Por usar uma definição
muito estreita de ciência, vem-se excluindo os diversos sistemas de
conhecimento do seu âmbito. A ciência não é apenas aquela dos experimentos
físicos e químicos. Essa é uma noção limitada que foi difundida na sociedade
humana ocidental a partir, por exemplo, de personagens de filmes, da literatura
e até de quadrinhos, como o Professor Pardal.
Como muitos estudos
científicos desaguam em tecnologias, há também uma confusão de que toda ciência
deve levar à construção de algo. São visões limitadas da ciência, e, se assim
alguns quiserem entendê-la, isso não significa que todos os demais devem
segui-los.
Mesmo tal visão
prevalecendo, não seria o fato de ter ou não o nome de ciência o que faria o
Espiritismo, em sua essência, mais ou menos importante. No entanto, o efeito
retórico de ser uma ciência ajuda a convencer muitas pessoas.
A ciência foi criada para
se distinguir do estudo leigo e do misticismo da Idade Média. Daí porque é
difícil aceitar como científico um conhecimento sobre aquilo que é
completamente desconhecido pela maioria dos homens, tido por místico, como no
caso do Espiritismo.
Ela busca criar um sistema
composto por especialistas que usam métodos para chegar a teorias a serem
testadas por eles mesmos e por outros especialistas, procurando sempre o
progresso no conhecimento moral e intelectual. A ideia de que a ciência busca
chegar a verdades é antiquada. Ela apenas propõe hipóteses, as testa, fica com
elas ou descarta. Esse processo é contínuo.
Allan Kardec utilizou o
método de observação dos fatos espíritas, realizando experimentos em diversas
cidades diferentes, de distintos países, na América e na Europa, seja
pessoalmente, seja por correspondência com outros pesquisadores e
médiuns.
Os espíritas precisam
retornar com esse tipo de estudo e difundi-lo pelo mundo com o uso da internet.
Dever-se-ia criar uma rede de interação para trocas de informações sobre pesquisas
a serem realizadas no máximo de países e definir alguns “atualizadores da
codificação” que possam atualizar os ensinamentos dos séculos XIX e XX para as
necessidades do mundo e da racionalidade do século XXI.
Kardec viveu em um momento
no qual o conhecimento humano era completamente diferente de hoje. O pensamento
moderno reducionista, dicotômico e buscador de verdades predominava naquela
época. Hoje já vige um pensamento chamado por muitos de pós-moderno, que é
complexo, transgressor de dualidades e que sabe serem as verdades fugazes, se é
que se deveria ainda falar na obtenção delas enquanto seres encarnados nesse
estágio de evolução.
Os espíritas deveriam
perguntar aos bons espíritos, por meio de médiuns em dezenas de lugares, por
exemplo: o que é a verdade? A Verdade, com inicial maiúscula, de que falam os
espíritos é a mesma verdade de que falam os homens sobre os fatos? Ela é
alcançável pelos homens nesse estágio? Como diversas ideias do Espiritismo são
paradoxos, a exemplo de as pessoas nascerem com um programa, mas terem livre
arbítrio, é preciso desenvolver um raciocínio complexo para ser um espírita no
século XXI? O termo complexidade é utilizado pelos espíritos superiores como um
tipo de pensamento mais evoluído? Ciência, filosofia e religião são aspectos
dissociáveis? Como eles se interajudam?
É possível se realizar
centenas de novas perguntas aos espíritos com base no pensamento humano atual,
realizando uma espécie de atualização do brilhante trabalho realizado pelo
codificador e demais espíritas nos séculos XIX e XX. Parece ser chegada a hora
de a Ciência Espírita tomar de vez espaço nos lares e nos corações de toda a
humanidade.
Para tanto, é importante
um novo giro do Espiritismo e sua ampla difusão, o que poderia seria encabeçado,
por exemplo, por Divaldo Franco, enquanto coordenador de um grupo de médiuns a
serem estudados juntamente com os ensinamentos dos espíritos que se manifestam
por meio deles, e por Haroldo Dutra Dias, enquanto coordenador de um grupo de
pesquisadores científicos.
A difusão do Espiritismo é
importante não quanto religião no seu sentido mais comum, mas por ser um
conjunto de informações importantíssimas para elevar a qualidade da vibração
dos seres humanos, para ligá-los no Bem, retirando-os da depressão, dando-lhes
energia, impedindo suicídios etc. Como uma típica ciência, o Espiritismo
informa e ajuda a solucionar problemas graves da vida humana. É uma poderosa
ferramenta de conhecimento para a mudança moral e vibratória de que o mundo
tanto carece.
Obs.: alguns colegas
questionaram o fato de essa ser uma opinião do autor, e não dos espíritos, que
têm se focado muito mais nos aspectos morais do que nos científicos. O autor
responde que diversas obras de Emmanuel, André Luiz e outros espíritos são muito
científicas. O próprio Kardec, escolhido para codificar o Espiritismo, era
predominantemente homem da ciência, ateu até os 50 anos e, assim, nada
religioso. Repita-se que fortalecer o pilar científico não é deixar o moral de
lado, pois eles se complementam, não brigam. Lembre-se que, segundo Kardec, em
A Gênese[9] quando uma noção do Espiritismo
contradisser a da ciência, deve-se ficar com esta última:
“55. Um último caráter da
revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se produz, é
que, apoiando-se em fatos, a doutrina tem que ser, e não pode deixar de ser,
essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Pela sua substância,
alia-se à ciência que, sendo a exposição das leis da natureza, com relação a
certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas
leis. As descobertas que a Ciência realiza, longe de o rebaixarem, glorificam a
Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas ideias que
formaram de Deus.
O espiritismo, pois,
estabelece como princípio absoluto somente o que se acha evidentemente
demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo-se com todos
os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias
descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer
ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e
abandonado o domínio da utopia, sem o que o espiritismo se suicidaria. Deixando
de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de
par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas
descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se
modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”.
Agradecimentos a
Marcília Brito, Fábio Roque Araújo e Laíze Lantyer pelos comentários ao texto.
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