A Transitória Maldade Humana
A maldade dos homens
sempre inquietou os pensadores dos mais diversos campos do saber e da ação
humana: filosofia, ciência, arte, religião.
Recentemente o Jornal do
Brasil publicou em seu caderno Ideias uma resenha sobre uma obra que trata
deste tema. O livro em questão é O mal no pensamento moderno, de Susan Neimam e
o título e subtítulo da matéria, assinada por Joel Macedo, é também expressivo:
“O mal nosso de cada dia - Filósofa parte do terremoto de Lisboa para mostrar
como o mal deixou de ser divino para se tornar criação do homem”.
Para a autora, o terremoto
de Lisboa em 1755 é um divisor de águas nas concepções sobre o mal. Antes deste
evento que abalou a Europa, prevalecia “a visão de males naturais como punição
para males morais”.
Nas palavras do
resenhista:
Lisboa aboliu as causas
morais, absolveu Deus e os pecados coletivos, e os terremotos passaram a ser
vistos como desastres naturais, algo fora da intenção divina ou
responsabilidade humana. Explicar o mal como processos naturais, implicando
mais a natureza em si, foi uma forma de tornar o mundo menos ameaçador.
Deus não é mais agente
punitivo, causa de males que retornam aos homens como forma de castigo. O mal
depois de Lisboa é reduzido ao seu aspecto moral, aquele praticado pelo homem,
por deliberação de sua vontade.
Dentro de certos padrões
previsíveis os males humanos pareciam não mais destinados a inquietar os
filósofos, pois que o mal parecia ter limites... O Holocausto (extermínio dos
judeus e outras vítimas durante a Segunda Grande Guerra), no entanto, reavivou
a discussão sobre os limites da barbárie, da perversão humana, lançando na
atmosfera intelectual européia e mundial uma onda de pessimismo e descrença.
Apesar da descrença na
Providência Divina, que se acentuaria no pós-guerra, vozes se levantaram para
absolver Deus, por sua possível omissão diante das atrocidades. (Não se
acredita muito Nele, mas quando ocorre algo grave, O acusamos de não se fazer
presente, quando Ele na verdade, nem mesmo fora convidado a participar de
nossas vidas, antes das tragédias...)
Estamos nos referindo
particularmente a Hanna Arendt. Filósofa judia, radicada nos Estados Unidos,
ela estudou profundamente as questões do mal e suas discussões estão presentes
no livro Eichmann em Jerusalém, que trata do julgamento do carrasco nazista,
responsável pela morte de milhares de pessoas.
Partindo do caso Eichmann
ela pondera que o mal pode tornar-se banal e espalhar-se pelo mundo dos homens
como um fungo, porém apenas em sua superfície. As raízes do mal não estão
definitivamente instaladas no coração do homem e por não conseguirem penetrá-lo
profundamente a ponto de fazer nele morada, podem ser arrancadas.
A sua defesa da Divindade
encontra-se no trecho de uma carta enviada a um amigo, na qual afirma que “O
mundo como Deus o criou parece-me um mundo bom.''
Com Deus absolvido (mesmo
que parcialmente) pela criação do mal e suas conseqüências, vejamos a visão
espírita sobre esta questão.
A visão espírita do mal
Para a doutrina dos
espíritos o mal é criação do próprio homem e não tem existência senão
temporária, transitória, pois no arranjo maior da Vida não tem sentido a
permanência do mal. O mal, desta forma, faz parte do aprendizado, porém na
condição de resíduo; por isso, ele deve ser descartado em algum momento.
Conforme Kardec aponta em
Obras Póstumas “Deus não criou o mal; foi o homem que o produziu pelo abuso que
fez dos dons de Deus, em virtude de seu livre arbítrio.” Este pequeno trecho
compõe um dos mais belos ensaios que Kardec deixaria, não intencionalmente,
para publicação posterior. Trata-se de O egoísmo e o orgulho: suas causas, seus
efeitos e os meios de destruí-los.
O mestre lionês, ao
desenvolver o tema, parte do pressuposto de que o instinto de conservação,
natural e necessário para a sobrevivência do homem está na origem do egoísmo e
do orgulho. Este e outros instintos têm a sua razão de ser. No entanto, o homem
abusa destes instintos, por conta do apego às sensações que as impressões da
matéria lhes causam.
Vive então, (e aqui começa
nossa análise), a sua longa epopeia rumo à maturidade, devendo liberar-se de
tudo que signifique retenção a esta fase infantil, de imaturidade, de apego ao
ego, em que tudo deve girar ao nosso redor.
Na mensagem “A lei de
amor”, de Lázaro, presente em O Evangelho Segundo o Espiritismo, o autor afirma
que
Em sua origem, o homem só
tem instintos; quando mais avançado e corrompido, só tem sensações; quando
instruído e depurado, tem sentimentos. E o ponto delicado do sentimento é o amor...
Os instintos, as sensações
e os sentimentos estarão presentes na existência humana em determinadas
combinações, durante todo o processo evolutivo, com a preponderância de alguns
sobre os outros.
Na fase inicial de sua
jornada – na condição de simples e ignorante – é possível que o instinto lhe
seja o melhor guia; à medida que desenvolve as potências da alma – a
inteligência, a vontade – ele tende a apegar-se às sensações, pois não
desenvolveu ainda, na mesma proporção os sentimentos, que permanecem como
presença latente e promessa futura; como a inteligência desenvolve-se mais
rapidamente, na ausência de sentimentos como a fé, a esperança, a caridade, o
homem tende a prender-se à sensações materiais; por fim, aliando a inteligência
(instruído) e as experiências de vida (depurado), os sentimentos começam a
ocupar maiores espaços de manifestações anímicas no homem.
Podemos, assim, afirmar
que os instintos e as sensações ainda convivem conosco hoje, pois como
espíritos encarnados, imersos em um corpo físico, estamos sujeitos às leis e às
atrações da matéria, porém os sentimentos tendem a dominar-nos a alma, aliado à
inteligência, que já temos desenvolvido sob as suas diversas modalidades.
Retomando o ensaio de
Kardec, este vai insistir no debate em torno do egoísmo e do orgulho,
situando-os como causa de todos os males.
Um outro conceito
precisamos analisar, porém, neste momento, antes de prosseguirmos e
aprofundarmos esta questão. Trata-se do conceito de paixão.
O conceito de paixão
A definição de paixão
encontrada nos dicionários pode nos ajudar a compreender, antecipadamente, o
que desejam expressar os espíritos e Kardec quando se utilizam deste termo.
Segundo o Aurélio paixão é um: “Sentimento ou emoção levados a um alto grau de
intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão; Amor ardente; Inclinação
afetiva e sensual intensa; Entusiasmo muito vivo por alguma coisa; Atividade,
hábito ou vício dominador”.
Lendo um pequeno trecho
das páginas iniciais de O Livro dos Espíritos (Introdução ao Estudo da Doutrina
Espírita), encontramos Kardec a expressar-se nestes termos (p. 25):
O Espírito encarnado se
acha sob a influência da matéria; o homem que vence esta influência, pela
elevação e depuração de sua alma, se aproxima dos bons Espíritos, em cuja
companhia um dia estará. Aquele que se deixa dominar pelas más paixões, e põe
todas as suas alegrias na satisfação dos apetites grosseiros, se aproxima dos
Espíritos impuros, dando preponderância à sua natureza animal. (grifo nosso)
Na mesma Introdução,
quando trata da escala, das classes em que podemos situar os espíritos em sua
trajetória evolutiva, o codificador afirma (p. 24):
Os [espíritos] das outras
classes se acham cada vez mais distanciados dessa perfeição, mostrando-se os
das categorias inferiores, na sua maioria eivados das nossas paixões: o ódio, a
inveja, o ciúme, o orgulho, etc. Comprazem-se no mal. (grifo nosso)
Cabe-nos agora, destacar
que o egoísmo e o orgulho compõem o que Kardec designa como sendo as paixões. O
que podemos confirmar quando lemos mais adiante, ainda na Introdução (p. 27):
Ensinam-nos que o egoísmo,
o orgulho, a sensualidade são paixões que nos aproximam da natureza animal,
prendendo-nos à matéria; que o homem que, já neste mundo, se desliga da
matéria, desprezando as futilidades mundanas e amando o próximo, se avizinha da
natureza espiritual. (grifo nosso)
No capítulo em que trata
da escala espírita, Kardec ao situar os Espíritos imperfeitos na terceira
ordem, traça como seus caracteres gerais (p. 89): “Predominância da matéria
sobre o Espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as
paixões que lhes são conseqüentes.” (grifo nosso)
Será necessário darmos
agora um salto e nos localizarmos na parte terceira de O Livro dos Espíritos
(Das Leis Morais), no capítulo XII, Da perfeição moral, no item denominado
justamente Paixões. Abrangendo seis questões (907 a 912), Kardec faz um estudo
breve, porém aprofundado deste tema, no diálogo que trava com os espíritos
superiores que colaboram com a Codificação.
Em resumo eis o que
apreendemos:
As paixões são constitutivas, fazendo parte
do que podemos denominar de natureza humana. O seu princípio não é
originariamente mau, pois “o princípio que lhe dá origem foi posto no homem
para o bem”. São os acréscimos nossos, da vontade humana, os excessos, pois o
“abuso que delas se faz é que causa o mal”. (questão 907)
Como já comentado por Kardec em linhas
atrás, certas paixões “nos aproximam da natureza animal”; desligando-se, porém,
o homem da matéria e suas atrações, por meio da ação de amor ao próximo, ele se
aproxima “já neste mundo” de sua natureza espiritual. (grifo nosso)
Podemos inferir, pois, que as paixões, este
“entusiasmo muito vivo por alguma coisa” ou este “sentimento ou emoção levados
a um alto grau de intensidade” na definição do Aurélio, transita na visão
espírita da natureza animal à natureza espiritual. Do instinto de conservação
que nos impele a buscar tudo para nós mesmos, no desejo de preservarmos nossa
vida a qualquer custo, em detrimento da vida alheia (quando próximos da
natureza animal, nos primórdios das experiências humanas) transitamos para um
outro extremo, que é a abnegação, que também na definição do Aurélio significa
“renunciar a; sacrificar-se, mortificar-se, em benefício de Deus, do próximo,
de si mesmo”. Não à toa, o próprio sacrifício de Jesus, mormente na tradição
católica (a morte na cruz) é denominado de Paixão (o próprio Aurélio indica o
uso da maiúscula para assim o designar).
O governo da paixão é o que determina o
limite em que se situa a fronteira entre o bem e o mal. A paixão se torna um
perigo quando perdemos o domínio sobre ela e causamos males aos outros ou a nós
mesmos. Como alavanca que pode decuplicar nossas forças, se mal acionada e
direcionada pode voltar-se contra nós e nos esmagar. (questão 908)
Na resposta dos espíritos a Kardec é ainda
dito que as paixões se assemelham a um corcel , um cavalo veloz, “que só tem
utilidade quando governado e que se torna perigoso desde que passe a governar”.
A própria sabedoria popular nos ensina que a vaidade, ou o egoísmo ou o orgulho
não causam mal desde que em doses adequadas. Frases como “um pouco de vaidade
faz bem à pessoa” e outras do gênero (quando ditas com sinceridade)
correspondem exatamente ao que os espíritos em outras palavras referem-se ao
domínio das paixões.
É dito também que as paixões, além de
ampliar as forças humanas, “auxiliam na execução dos desígnios da Providência”.
A paixão, como define o Aurélio, é também
um ”entusiasmo muito vivo” e o termo entusiasmo corresponde a “exaltação ou arrebatamento
extraordinário daqueles que estavam sob inspiração divina”, também significando
“dedicação ardente, ardor”. Logo, o homem quando se torna entusiasmado, no
sentido mais elevado do termo, pode auxiliar nas tarefas que a Providência
Divina lhe designa e de que o homem é instrumento.
O princípio das paixões tem por fundamento
um “sentimento” ou uma “necessidade natural”; logo, as paixões não podem ser
concebidas como um mal em si, pois elas são “uma das condições providenciais da
nossa existência”; o excesso na utilização desta ferramenta é que causa o mal;
as paixões que o aproximam da natureza animal o afastam da natureza espiritual;
haverá, por outro lado, “predominância do espírito sobre a matéria” quando os
homens utilizarem as paixões como instrumento a serviço dos bons sentimentos, o
que os conduzirá mais rapidamente à perfeição que nos cabe atingir. (questão
908)
Os esforços, as tentativas para se atingir
uma meta, podem conduzir o homem a “vencer as suas más inclinações”. Porém, o
homem não costuma exercitar-se neste sentido, o que lhe exigiria, em verdade,
“esforços muito insignificantes”. (questão 909)
Kardec e os espíritos relacionam nesta
questão a má utilização das paixões e as más inclinações, tendências,
tornando-as sinônimas. Os espíritos então nos afirmaria, de outra forma, que o
governo, o domínio que pode se pode ter sobre as paixões não exige, comumente,
grandes esforços, mas apenas dedicação, persistência.
O homem pode contar com os bons espíritos,
cuja missão é auxiliá-los, caso deseje vencer suas más paixões ou inclinações.
(questão 910)
Há uma inscrição no pórtico de Delfos, na
Grécia, dizendo que “invocado ou não ele estará sempre presente”; a divindade
ou Deus sempre está presente em nossas vidas, mesmo que não solicitemos... O
mesmo ocorre com os bons espíritos, que nos assiste, nos auxiliando sempre. A
despeito de nossa rebeldia e, às vezes, do nosso mergulho deliberado no mal,
eles esperam pacientemente uma oportunidade para nos reerguer, colocando-nos em
condições de retomar a caminhada no rumo do Bem. Se invocados (e invocar é
solicitar ajuda ou intercessão de alguém) ou se evocados (evocar é chamar a si,
reclamar a presença de alguém) os espíritos amigos haverão de nos auxiliar a
vencer nossas más paixões ou más tendências, inclinações.
A vontade pode sempre triunfar sobre as más
paixões, dominando-as. Os homens, no entanto, que se comprazem com o mal, que
lhes proporciona prazer, pela afinidade com tudo o que se aproxima dessa sua
transitória, mas obstinada natureza animal, são aqueles cuja “vontade só lhes
está nos lábios”. Aqueles que compreendem “a sua natureza espiritual” lutam por
reprimir as próprias más tendências. “Vencê-las é, para eles, uma vitória do
Espírito sobre a matéria.” (questão 911)
É mais fácil, cômodo enganar-se, iludir-se
do que se enfrentar nas lutas sem quartel que se tem que travar para a vitória
sobre si mesmo, contra o mal existente dentro de nós mesmos. A alavanca férrea
da vontade, que nos pode ajudar a remover todos os obstáculos do caminho,
precisa ser forjada todos os dias, retemperada pela oração e pela vigilância.
É necessário, portanto, estarmos atentos e
em comunhão com o Alto, para não nos amolentarmos, pois é comum nos deixarmos
arrastar pelos cantos de sereia da preguiça, da acomodação e dos prazeres que a
isto conduz ou implica.
Por fim, o antídoto recomendado pelos
espíritos no combate que se deve travar para vencer-se o “predomínio da
natureza corpórea” é a prática da abnegação. (questão 912)
A própria definição do que é abnegação
indica o que nos cabe fazer: “renunciar a; sacrificar-se, mortificar-se, em
benefício de Deus, do próximo, de si mesmo”. Os verbos de que o dicionarista se
utiliza para definir abnegação nos sugere dois tipos de atitude: a ativa e a
passiva. Renunciar a alguma coisa é, aparentemente, uma atitude passiva, de
deixar-se, abandonar-se, apagar-se ou até de fugir de alguma situação. No
entanto, ninguém pode renunciar às coisas do mundo em favor de algo ou alguém
sem que mobilize as forças do pensamento e do coração, com “dedicação ardente,
ardor” próprio de quem mobiliza o entusiasmo naquilo em que se empenha. A
abnegação é, enfim, um sentimento de renúncia, de sacrifício, de anulação do
ego para a vivência ativa do amor ao próximo.
Bem, depois de termos
examinado as questões 907 a 912, sobre as paixões, cabe-nos indicar que as
questões que se seguirão tratam do egoísmo. Da questão 913 a 917 Kardec e os
espíritos dialogam sobre esta “verdadeira chaga da sociedade”. Às más paixões
ou más inclinações Kardec designará agora como vícios como se vê na questão
913: “Dentre os vícios, qual o que se pode considerar radical?”
A resposta é naturalmente
o egoísmo, que está na raiz de todos os males (daí o adjetivo radical utilizado
na pergunta). E continuam os espíritos “Por mais que lhes deis combate, não
chegareis a extirpá-los, enquanto não atacardes o mal pela raiz, enquanto não
lhe houverdes destruído a causa. Tendam, pois, todos os esforços para esse
efeito...” (grifos nossos)
E ao final da resposta os
espíritos são claros:
Quem quiser, desde esta
vida, ir aproximando-se da perfeição moral, deve expurgar o seu coração de todo
sentimento de egoísmo, visto ser o egoísmo incompatível com a justiça, o amor e
a caridade. Ele neutraliza todas as outras qualidades.
A idéia de que o egoísmo e
o orgulho possam ser situados como causa de todos os males humanos pode causar mal-estar
a muitos que se propõe a examinar estas questões. Os espíritos e Kardec, de
modo simples e coerente, são muito felizes em situar no campo das causas
últimas, o papel das paixões ou dos sentimentos do egoísmo, do orgulho e outros
assemelhados. Tudo o mais estaria no campo dos efeitos. (que podem se tornar
causa de outros efeitos). A miséria socioeconômica, por exemplo, pode ter sua
origem na extrema concentração de renda em determinado país ou região. Na visão
espírita, sem desprezar as análises sociológicas, econômicas ou quaisquer
outras, a causa deste fenômeno está no egoísmo e no orgulho dos homens, em
última instância. A extrema concentração de renda, alegada como causa, na
verdade seria um efeito da causa primordial que são as más paixões.
Sentir é causar
Pesquisando na Internet
sobre este tema que estamos tratando, encontramos uma interessante dissertação
de mestrado, na área da Psicologia Social, que em resumo trata da relação entre
maturidade, estabilidade emocional e altruísmo. A autora deste trabalho
investigou o perfil daqueles que adotam crianças, tendo comparado o grupo que
adota crianças ainda bebês e aqueles que o fazem com crianças maiores. Ao final
conclui-se que “os adotantes tardios realmente mostraram-se mais maduros,
estáveis emocionalmente e mais altruístas do que os adotantes convencionais”.
Buscando a equivalência do
conceito de abnegação e altruísmo, podemos inferir que aqueles que se devotam
ao próximo, esquecidos de si mesmos, têm por resposta, em decorrência direta,
uma maior maturidade e estabilidade emocional (enfim, os sentimentos de
plenitude, de paz, tão almejados por todos). Abnegar-se, no caso específico das
adoções tardias, isto é, de crianças maiores, com 2 ou mais anos, é romper com
as convenções, assumir o sacrifício da adaptação, dar-se em maior cota de amor
para integrar a criança à nova família.
Podemos parafrasear Martin
Claret e afirmar que sentir é causar. Isto é, aqueles que experimentam,
exercitam sentimentos elevados, aqueles voltados ao bem-estar do próximo,
modificam suas próprias vidas. Causam transformações no campo de manifestações
das emoções, adquirindo o que se denomina frequentemente de equilíbrio ou centra
mento psicológico (fulano é uma pessoa centrada, equilibrada).
Por outro lado,
sentimentos pouco elevados, carregados de apego ao ego, causam também, ou seja,
promovem também modificações em nossas vidas – pessoais e coletivas. A
discriminação étnica, racial que tem causado tantos problemas no mundo, é
exemplo disto. Os resultados, no mais das vezes, são tragédias, quer pessoais,
grupais ou coletivas (o extermínio dos judeus, já citado; a perseguição aos
ciganos no leste europeu; as sutis discriminações aos negros brasileiros e
outros lamentáveis exemplos).
O combate ao mal
Por não sabermos ainda
produzir, em nossos pensamentos, atitudes e ações o bem em toda a plenitude,
estamos às voltas com as sobras, com os resíduos das nossas paixões, de que
devemos nos livrar, conforme propomos no início deste texto. Não é simples,
porém, nos livrarmos do mal que produzimos. Mal que nasce em nós, nos impregna
e temporariamente passa a fazer parte de nossa personalidade.
Para atingir tal intento é
preciso vigiar, como sentinelas atentos, as fontes do próprio coração, de onde
afinal provém todo o mal, como nos ensinou Jesus, quando lançou uma pergunta
que continua atual: “...como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do
que há em abundância no coração, disso fala a boca.” (Mateus 12:34)
Paulo de Tarso na sua
carta aos romanos (7:19) tece comentários sobre as lutas que se deve travar
para combater o mal em nós mesmos, em frase já célebre: “Porque não faço o bem
que quero, mas o mal que não quero esse faço”.
Prosseguindo nesta linha
de argumentação podemos levar a pensar que o mal de que estamos falando é algo
medonho, terrível, execrável – e poderíamos citar aqui certas manifestações do mal
que tenham realmente uma tal face. Alguém poderia dizer a si mesmo: “Bem, deste
tipo de mal felizmente eu estou livre...”
Pois bem, o mal porém, de
que estamos a tratar não se restringe às suas manifestações mais grotescas,
trágicas. E por isso está tão presente em nós... O mal de que fala o Paulo em
suas epístolas é o mal corriqueiro que vive em nós e é alimentado por nós
mesmos. E que, em certa medida, nos proporciona prazer. Daí a nossa dificuldade
de nos desembaraçarmos dele...
Retomando a questão do
abuso dos instintos, temos um mal tão comum hoje, que a ninguém repugna em
princípio: o comer em excesso. Nele está presente o instinto de conservação. A
natureza estabeleceu para algumas das funções deste instinto a sensação de
prazer, reconforto, saciedade, como forma de regulá-lo. E ao extrapolarmos os
instintos, abusando deles, nos apegamos às sensações e nos viciamos
literalmente no hábito de comer em demasia, não mais para nos alimentarmos, mas
para extrairmos prazer – bruto ou sofisticado deste ato. É preciso ainda
acrescentar que podemos nos dar aos excessos apoiados confortavelmente em mil
dissimulações, disfarces, desculpas, prontamente aceitas pelos outros,
condescendentes que somos com os desvios alheios, tanto quanto como os
nossos...
Os maus hábitos de cada
dia por vezes tendem a se perpetuar em nossas vidas por diversos motivos, entre
outros, a própria aprovação social dos mesmos. Vivendo em uma sociedade ainda
marcadamente materialista e hedonista, não é de surpreender que nos vejamos impelidos
a aceitar como natural todas as atrações da matéria e todos os prazeres que
isto proporciona.
A luta sem tréguas e sem
quartel contra o mal que existe ainda em nós, exige não tão somente
conhecimento, mas sobretudo um grande esforço de vontade deliberada e
consciente, pois estagiamos ainda próximos das nossas experiências no reino da
animalidade; daí nos sentirmos atraídos, arrastados por certas facetas das más
paixões. Por isso, não raro, apesar de toda a consciência do bem e do mal,
nossos atos de rebeldia ou de invigilância nos embaraça nas tramas de
experiências totalmente dispensáveis que trazem por consequência direta ou
indireta, dores e responsabilidades...
Muitos de nós sucumbimos a
estas experiências dispensáveis por estarmos desatentos ao cumprimento dos
deveres que nos cabe realizar, às vezes penosos. Para fugirmos à rotina, que
nos constrange mas também nos livra de muitos problemas, nos lançamos em certas
aventuras que nos causam problemas sem fim.
Outros, desejando testar inconsequentemente
suas próprias resistências, findam por abrir a caixa de Pandora (que segundo a
mitologia grega continha todos os males), despertando sentimentos, sensações
que deveriam permanecer soterrados, a espera de melhor oportunidade para serem
trabalhados, lapidados. Portanto, não tenhamos nunca a mórbida curiosidade de
conhecer em toda a extensão a "maldade humana" (a nossa própria e a
alheia), cabendo-nos, antes, mantermo-nos em alerta, para evitar que o mal que
brota de nós mesmos se alastre e por contágio encontre afinidade com o mal que
nasce em outros corações...
Conhecer-se para
transformar-se
Para todos que desejem
sustentar-se na luta sem tréguas, encontramos em Santo Agostinho uma das
estratégias mais eficazes de autotransformação (e por consequência de vitória
sobre nós mesmos). Trata-se da meditação diária sobre os próprios atos,
fundamental se desejamos combater o mal em nós mesmos sistematicamente. A lição
agostiniana está inserida na última questão (919 e 919-a) da Parte Terceira Das
leis morais, no capítulo XII, Da perfeição moral de O Livro dos Espíritos.
Na primeira parte da
questão (919) Kardec indaga dos espíritos: “Qual o meio prático mais eficaz que
tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?” A
resposta, muito direta e clara é também concisa: “Um sábio da antiguidade vo-lo
disse: Conhece-te a ti mesmo.”
Muito arguto, Kardec
desdobra a questão buscando solucionar a questão prática que envolve o tema: o
como fazê-lo: ”Conhecemos toda a
sabedoria desta máxima, porém a dificuldade está precisamente em cada um
conhecer-se a si mesmo. Qual o meio de consegui-lo?”
Santo Agostinho, como
resposta, tece muitas considerações, que resumiremos a seguir:
Devemos interrogar a própria consciência,
passando em revista os atos cotidianos, para a identificação dos desvios dos
deveres que deveriam ter sido cumpridos e dos motivos alheios de queixa por
conta dos nossos atos. Por este meio chegou ele, Santo Agostinho, a se conhecer
“e a ver o que [nele] precisava de reforma”.
Quem se disponha a examinar os atos
cotidianos para identificação do bem ou do mal que se possa ter feito “grande
força adquiriria para se aperfeiçoar”. Acresce ele que se deve rogar a Deus e
aos espíritos protetores esclarecimento, pois “Deus o assistiria” neste
sentido.
Propõe para o exame dos atos cotidianos o
dirigir a si mesmo perguntas, o interrogar-se sobre o que se faz e com que
propósito para identificarmos se fizemos algo que censuraríamos se praticado
por outra pessoa, e também se fizemos algo que não ousaríamos confessar.
Propõe ainda mais, fazendo-nos situar
diante da vida na condição daquele que pode retornar ao mundo dos Espíritos a
qualquer instante, onde deveremos fazer o balanço dos próprios atos praticados
durante a experiência carnal: ao desembarcar no outro lado da vida onde nada
pode ser ocultado teríamos “que temer o olhar de alguém”?
A prova de que podemos descansar a
consciência está em examinar se nada fizemos contra a Divindade, ao próximo e a
nós mesmos.
Porque seja difícil a auto avaliação, o autojulgamento
por conta das ilusões do amor-próprio, é proposto como meio de verificação
isento de ilusão perguntar a si mesmo como classificaríamos nossas próprias
ações, se praticadas por outras pessoas. Se tivermos motivos para censurar tais
ações, torna-se claro que não devemos agir do mesmo modo.
Na mesma linha de raciocínio, propõe ele
que procuremos verificar o que pensam os outros sobre os nossos atos. E mais: a
opinião dos inimigos, por não terem nenhum interesse em mascarar a verdade, não
deve ser desprezada, pois eles são um bom meio de advertência, utilizando-se
com mais frequência da franqueza do que faria um amigo.
Aconselha ainda àqueles que se sintam
possuído do desejo sério de melhorar-se a investigar minuciosamente a própria
consciência a fim de extirpar de si os maus pendores. E tal como ele próprio o
fazia, que busquemos dar um balanço diário de nossas ações morais, para
avaliarmos perdas e lucros; os lucros serão maiores que as perdas se assim
agirmos.
Em seguida Santo Agostinho afirma
textualmente: “Se puder dizer que foi bom o seu dia, poderá dormir em paz e
aguardar sem receio o despertar na outra vida.” O seu dia, cremos nós, deve ser
entendido com a culminância de uma sucessão de dias. De qualquer forma,
indica-nos a necessidade de aproveitarmos bem todos os dias, dando atenção ao
tempo que costuma fugir-nos das mãos, caso não o administremos bem.
Como meio de autoexame da consciência,
recomenda que formulemos “questões nítidas e precisas”, não temendo
multiplicá-las, de modo a nos interrogarmos acerca de nossos próprios atos.
Este diálogo íntimo, que não toma mais que alguns minutos e “alguns esforços”,
é meio de conquista da “felicidade eterna”.
Posto que muitos têm o futuro como incerto,
é que os espíritos vêm dissipar as nossas incertezas “por meio de fenômenos”
capazes de nos ferir os sentidos e de “instruções” (que nos cabe, por nossa
vez, também disseminar).
O comentário breve de
Kardec a esta resposta é digno também de exame. E para tanto tomamos a
liberdade de transcrevê-lo literalmente:
Muitas faltas que
cometemos nos passam despercebidas. Se, efetivamente, seguindo o conselho de
Santo Agostinho, interrogássemos mais amiúde a nossa consciência, veríamos
quantas vezes falimos sem que o suspeitemos, unicamente por não perscrutarmos a
natureza e o móvel dos nossos atos. A forma interrogativa tem alguma coisa de
mais preciso do que qualquer máxima, que muitas vezes deixamos de aplicar a nós
mesmos. Aquela exige respostas categóricas, por um sim ou não, que não abrem
lugar para qualquer alternativa e que são outros tantos argumentos pessoais. E,
pela soma que derem as respostas, poderemos computar a soma de bem ou de mal
que existe em nós.
A título de conclusão
Diante da banalização do
mal que se espalha pelo mundo dos homens, resta-nos individual e coletivamente
nos lançarmos ao bom combate, que é constante, exigindo-nos disciplina e
perseverança. A guerra do bem contra o mal, tema de incontáveis livros e
filmes, deve ser travada nos domínios dos nossos próprios corações, acima de
tudo.
Lembrando-nos da alegoria
dos ovos da serpente, devemos quebrá-los todos ainda no ninho, antes que
libertemos o mal que ainda teima em fazer morada em nós. Se já desencadeamos o
mal, somente nos resta sofrer-lhe as consequências, com serenidade e
resistência.
Se nos embaraçamos nas
tramas do mal, não basta arrependermo-nos de nossos atos e nos comprometermos à
mudança por desencargo de consciência (ou por quaisquer formas de promessas); é
necessário meditarmos profundamente no móvel de nossas ações; é preciso, enfim,
mergulharmos a sonda da investigação em nosso espírito para o exame de nossos
mais profundos sentimentos e pensamentos.
Se a nossa má ação
decorreu, por exemplo, do exercício da violência, devemos buscar em nosso
coração as raízes desta violência, esteja ela onde esteja; e somente há um meio
de extirparmos definitivamente as raízes de todos os males: estarmos de
permanente prontidão para domar, controlar lhes as expressões... Aprende-se nas
reuniões dos Anônimos (alcoólicos, em particular) que nossos vícios (as más
paixões) não tem propriamente cura, mas tão somente controle. As lutas sem fim
e sem quartel contra o mal exige-nos, desta forma, uma plena disponibilidade de
vigilância e oração.
Caso nossa
"meditação" acerca das raízes e frutos do mal seja superficial; caso
não examinemos com rigor as causas de nossas ações, fatalmente incorreremos nos
mesmos erros, quando as circunstâncias mudarem, quando forem outros os
cenários. O motivo da reincidência está em que nós não exercitamos nosso
"raciocínio moral", que também se desenvolve como o raciocínio
lógico, matemático, etc.
Por outro lado, mesmo que
não estejamos às voltas com as expressões mais visíveis do mal, como as paixões
humanas tornaram-se mais “violentas e devastadoras, no homem que prossegue
inquieto”, segundo Joanna de Ângelis, é possível que as consequências destas
paixões nos atinjam, diretamente ou indiretamente. A tendência de nos
refugiarmos no nosso mundo ainda preservado do contágio de tantos males pode
nos tornar alheios a este mundo de provas e expiações. Mantermo-nos sensíveis à
dor do próximo, por mais que isto nos possa incomodar ou constranger é atitude
genuinamente cristã... Refugiar-se na indiferença, como fuga aos incômodos que
as dores, as paixões e erros alheios nos causam, não é medida salutar.
Necessário se torna que
aprendamos com nossas vivências práticas e com os exercícios do “raciocínio
moral” e com um farto material de aprendizagem: os erros próprios e os alheios.
O aprimoramento ético-moral exige, enfim, reflexão e mergulho em si mesmo. E se
necessário for, que revisemos periodicamente nossas quedas e deslizes no campo
moral, ativando a memória para nos lembrarmos dos tantos espinhos que já
trazemos cravados na "carne do espírito", tal como ensina Paulo de
Tarso. Estes espinhos nos lembrarão a nossa condição de enfermos em estágio de
longa recuperação, necessitados de cautela...
E no mais, que
acreditemos, como em Juízo Final, canção de Nelson Cavaquinho, que “do mal será
queimada a semente / o amor será eterno novamente”, tendo a certeza de que todo
o império do mal ruirá quando rompermos os elos que mantemos com as porções
inferiores de nossa própria individualidade!
Referências Bibliográficas:
EBRAHIM, Surama
Gusmão. Adoção tardia: um estudo em termos de altruísmo, maturidade e
estabilidade emocional. João Pessoa, 1999. 200p. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) - Universidade Federal da Paraíba.
FRANCO, Divaldo
Pereira. Sol de Esperança (diversos espíritos). 2ª ed. Salvador: Livraria
Espírita Alvorada, 1978.
KARDEC, Allan.
Livro dos Espíritos. Federação Espírita Brasileira: Rio de Janeiro, 1995. 76ª
edição.
MACEDO, Joel. O
mal nosso de cada dia - Filósofa parte do terremoto de Lisboa para mostrar como
o mal deixou de ser divino para se tornar criação do homem. Disponível em
http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2004/03/05/joride20040305001.html.
Acesso em 7 mar. 2004.
Link: http://www.espirito.org.br/portal/artigos/diversos/comportamento/a-transitoria-maldade-humana.html
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