Nação Espírita
Embora tenha nascido na França, a
religião de Kardec encontrou no Brasil sua verdadeira pátria
Emerson Giumbelli
Um indivíduo comum, sem qualquer conhecimento
de medicina, recebe pessoas doentes, diagnostica seus males e prescreve
medicamentos. Não o faz por conta própria: alega agir como intercessor do
espírito de um médico. Trata-se de um “médium receitista”.
Cenas como esta eram quase desconhecidas no
Brasil da década de 1870, e começavam a ser noticiadas com grande espanto pelos
jornais. Além da prática “receitista”, que normalmente indicava aos pacientes
remédios homeopáticos, vinham ao conhecimento do público outras técnicas
terapêuticas não ortodoxas, como a dos “médiuns curadores” – que faziam algo
semelhante aos “passes” dos atuais centros espíritas – e a chamada
“desobsessão”, que curava a loucura causada pela intervenção de um espírito
mal-intencionado.
Os desinformados julgavam estar diante de
uma nova roupagem do velho curandeirismo. Para os adeptos da prática, porém, o
que experimentavam era uma demonstração poderosa da existência de entidades
espirituais e de sua intervenção no mundo material.
Surgido na França em 1857 – quando Allan
Kardec sistematiza a doutrina em seu O livro dos espíritos –, o espiritismo
cruzou o oceano com surpreendente rapidez. As primeiras notícias da formação de
grupos espíritas no Brasil são da década de 1860. Na mesma época, ocorrem as
primeiras traduções das obras de Kardec, providenciadas pelo médico Joaquim
Carlos Travassos (1839-1915).
Ele não foi uma exceção. Vários outros
médicos brasileiros abraçariam desde cedo o espiritismo. Foi o caso de Adolfo
Bezerra de Menezes (1830-1900), criado em família católica e que também foi
vereador e deputado. Em 1882, ele anuncia publicamente sua conversão ao
espiritismo, que considerava “um coroamento do cristianismo”. Passa então a
defender a doutrina em artigos publicados em O Paiz, um dos principais jornais
da época. Sua adesão à nova religião aconteceu depois que ele se impressionou
com as “curas extraordinárias” obtidas pelo médium João Gonçalves do Nascimento
(1844-1916).
Morador da região suburbana do Rio de
Janeiro, João Gonçalves trabalhava como despachante da Alfândega. A autoria de
suas curas era atribuída ao espírito do Dr. Dias da Cruz, professor da
Faculdade de Medicina falecido na década de 1870. Os feitos do médium causaram
tanto impacto que o próprio filho de Dias da Cruz, médico homeopata,
converteu-se ao espiritismo.
A crença trazida havia pouco tempo da
Europa se mostrava capaz de articular, à sua maneira, erudito e popular, elite
e povo: o médium era pouco qualificado, mas a entidade que se manifestava
pertencia a uma profissão prestigiada. Do mesmo modo, as práticas pouco
diferiam de outras formas populares de busca por cura, mas sua explicação
apelava para termos cultos e teorias sofisticadas. Era uma “fé raciocinada”.
Por isso não havia contradição na adesão de setores da classe média à religião
espírita. Engenheiros, advogados, oficiais militares, administradores públicos,
parlamentares... Os novos adeptos ressaltavam afinidades entre a doutrina de
Kardec e os princípios científicos e liberais em voga naquele fim de século.
Não à toa, vários crentes do espiritismo se engajaram em campanhas
abolicionistas. Republicanos proeminentes, como Saldanha Marinho (1816-1895) e
Quintino Bocaiúva (1836-1912), tinham simpatia pela doutrina. Por outro lado, a
difusão do espiritismo também se fazia em meios mais populares, interagindo com
saberes, práticas e religiosidades ancestrais dos descendentes de escravos.
A partir da instauração do regime
republicano em 1889, as restrições a práticas espíritas ganham nova arma. Para
os defensores da moderna medicina acadêmica, a “mediunidade receitista” era
mais um exemplo de curandeirismo, arcaico e anticientífico do qual a sociedade
deveria se proteger. Esta resistência tomou forma de restrição legal no Código
Penal elaborado em 1890. O artigo 157 qualificava o delito: “Praticar o
espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para
despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou
incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”. No momento
em que se extinguia o regime de religião oficial (o Império católico),
persistia a intolerância diante de novas crenças.
Ao longo das primeiras décadas do século
XX, ganha credencial científica a associação entre espiritismo e loucura.
Alguns psiquiatras chegam a divulgar estatísticas apontando o espiritismo como
uma das principais causas de distúrbios mentais no país. Com respaldo do Código
Penal, são tomadas diversas iniciativas de combate ao espiritismo. Autoridades
policiais e sanitárias protagonizam muitos episódios de perseguição. Mas a
repressão se concentra, como era de se esperar, nas práticas religiosas
populares, que exibiam referências africanas.
Neste período, ganhou importância a atuação
da Federação Espírita Brasileira (FEB). Criada em 1884, a instituição se via
agora no dever de lutar pela liberdade religiosa e ajudar a difundir a doutrina
pelo país. Para isso, mantinha o jornal Reformador (publicado ainda hoje) e
funcionava como centro espírita, com atividades de culto e estudo, incluindo um
serviço de “mediunidade receitista”. Iniciado em 1899, esse serviço atinge o
mais alto índice de consultas no ano de 1923, com quase 400 mil pessoas
atendidas.
Outro objetivo da FEB no período
republicano era unificar os trabalhos dos centros espíritas em torno de
doutrinas e rituais comuns. Afinal, a crença se espalhara rapidamente e sob
diversas formas. Ainda em 1904, circulavam no Brasil nada menos que 19
periódicos dedicados ao espiritismo. Os centros filiados à FEB multiplicaram-se
entre as décadas de 1920 e 1940, saltando de 47 para mais de 200. Embora
houvesse grupos espíritas em quase todos os estados, era nas regiões Sul e
Sudeste – especialmente no Rio, em São Paulo e em Minas Gerais – que eles mais
cresciam. Nas outras regiões, poucos grupos se concentravam nas capitais
costeiras.
Um fator decisivo para a consolidação do
espiritismo no Brasil foi o aparecimento da carismática figura de Francisco
Cândido Xavier, o Chico Xavier (1910-2002). Eclodiu primeiro como fenômeno
literário, com apoio da FEB, que desde o começo do século se dedicava à edição
de livros – somente no período de 1931 a 1941, a instituição publicou 1.411.400
exemplares de títulos espíritas. Parnaso d’Além Túmulo, primeira obra de Chico
Xavier, lançada em 1932, é uma compilação de poesias atribuídas a autores
brasileiros e portugueses – “recebidas” por um médium que mal completara o
primário.
Em 1938 vem a público outra obra
psicografada por Chico Xavier, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. O
livro narra a formação do Brasil sob a perspectiva espírita: os principais
acontecimentos de nossa História teriam contado com a intervenção de entidades
espirituais. Desde o princípio, quando forças invisíveis levaram a frota de
Cabral a se desviar do caminho das Índias, até a libertação dos escravos,
também orientada por mentores espirituais, estava profetizado o lugar de
destaque do Brasil no universo da cristandade. Surge daí uma forte associação
entre o espiritismo, a formação e o destino nacionais.
Interessante é que, naquele período, outras
religiões também procuram se vincular à identidade nacional. A Igreja Católica
elege Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil em 1929, e dois anos
depois é inaugurada a estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, ganhando
status de símbolo pátrio. De sua parte, a umbanda, em processo de constituição,
privilegia nos cultos dois tipos de entidades espirituais: os caboclos e os
pretos-velhos, que têm como referência explícita os índios e negros, vertentes
consagradas, ao lado dos brancos, como base da sociedade brasileira.
Mesmo congregando elementos católicos,
africanos e do ocultismo, a umbanda se constituiu como uma modalidade de
espiritismo. É o que indicam os primeiros livros que identificavam a nova
religião. Seus mentores criam em 1939 a Federação Espírita de Umbanda, e em
1941 realizam o I Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda. Kardec não é
sua principal referência, mas consta obrigatoriamente dos debates para a
institucionalização da umbanda, que mais tarde se proclamará a “primeira
religião genuinamente brasileira”.
A postura da FEB em relação à umbanda era
ambígua. Ainda que o espiritismo kardecista tivesse predileção por espíritos
brancos, nos anos 1920 não era raro se encontrar caboclos e pretos-velhos
produzindo curas e outras benemerências em centros espíritas. Isso mudaria na
década de 1940. Com a nova religião já institucionalizada, predomina uma
atitude de distinção: para os kardecistas, espiritismo e umbanda precisavam ser
diferenciados. A enorme heterogeneidade dos centros espíritas passou a
incomodar aqueles que buscavam uma doutrina mais unificada e definida. Por
outro lado, essa mesma diversidade era fonte de vitalidade para o universo do
espiritismo.
A aceitação social cada vez maior da crença
fica evidente com a promulgação do novo Código Penal brasileiro em 1949, no
governo Vargas. Persistiam artigos acerca de “charlatanismo” e “curandeirismo”,
mas o termo “espiritismo” já não constava mais da lei. Na prática, os
kardecistas deixaram de ser assediados pelas autoridades. O mesmo não aconteceu
com os cultos afro-brasileiros, que continuaram sendo vítimas de perseguição.
Modificações nas práticas espíritas
ajudaram a vencer resistências junto à classe médica. A “mediunidade
receitista” não era mais hegemônica, substituída pela “desobsessão” e,
sobretudo, pelos “passes”. Sem implicar qualquer contato físico entre médium e
paciente nem envolver a prescrição de medicamentos, os passes eram mais
aceitáveis do ponto de vista da medicina acadêmica.
Por fim, contribuíram para legitimar a
religião as atividades assistencialistas praticadas pela FEB. Para os
espíritas, promover a caridade é um princípio fundamental da moralidade
kardecista. Graças a ela, a atuação do espiritismo não ficou restrita aos
centros, ganhando diversos espaços sociais. A boa recepção das práticas
assistenciais propiciava a aceitação das práticas religiosas. Do ponto de vista
religioso, a caridade permitiu um novo diálogo com o catolicismo. Em contraste
com o período inicial, quando pregavam a ruptura, os espíritas passam a adotar
uma atitude de aproximação. Atitude que jamais seria recíproca por parte da
Igreja Católica.
Na segunda metade do século XX, o
espiritismo tinha os caminhos abertos para se tornar uma das religiões mais
populares do Brasil. Se na França, berço de Allan Kardec, perdeu vitalidade já
no início daquele século, para o cotidiano dos brasileiros a crença permanece
uma influência marcante. A grande difusão da crença na reencarnação em um país
de maioria católica é prova disso. Hoje a viagem feita pelo espiritismo em sua
chegada ao Brasil é percorrida em sentido contrário. A sepultura de Kardec é
uma das mais visitadas, entre as muitas celebridades que repousam no cemitério
Père Lachaise, em Paris. Em boa parte, graças aos turistas vindos do “maior
país espírita do mundo”.
Emerson Giumbelli
é professor de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
autor do livro O Cuidado dos Mortos. Uma História da Condenação e Legitimação
do Espiritismo (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997).
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