Tolerância e Crença
Cristian Macedo
"Toda crença é respeitável, quando sincera e
conducente à prática do bem."
O Livro dos Espíritos, item 838.
Erigindo-se arauto da
tolerância, entoando hosana plenificadora através da letra edificante,
Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, a proclama "apanágio da
humanidade", convidando-nos ao perdão mútuo, visto que o equívoco dial
sinaliza o estádio de notória inferioridade em que nos demoramos.
Lembra o filósofo
iluminista que, nada obstante a religião cristã ser a representante da mais
doce mensagem inspiradora da tolerância, é em suas fileiras que comumente se
encontram os mais cruéis sintomas da falta desse sentimento.
Quando perseguida, em era
primitiva de sua história, a cristandade apelava aos imperadores para que
concedessem liberdade religiosa, invocando os direitos pertencentes a todo
cidadão da antiguidade romana.
Tertuliano, pensador
simpático aos propósitos da Assembleia do Amor Universal, exora a tolerância
como nenhum outro.
A partir de 313, ao
conceder a todas as religiões do Império liberdade de ação, no Edito de Milão,
Constantino talvez não soubesse que daria ensejo à gradual repressão ao paganismo,
da mesma forma que, dentro do próprio movimento cristão, abriria espaço para
Fírmico Materno, Leão Magno e outros, incentivarem atos persecutórios em
relação aos adeptos das heresias que afloravam dentro das suas hostes.
Sabendo que a palavra herético
vem do grego hairetikis, significando "o que escolhe", podemos
concluir que a perseguição, infligida e ao mesmo tempo sofrida pelos cristãos,
em última instância punia a utilização individual do livre arbítrio, divina
faculdade de que todo Espírito é portador.
Nesse contexto de
intolerância, quando o Medievo é banhado de sangue e trevas, vemos surgir os
"autos-de-fé", enormes festas populares nas quais compareciam, além
do povo que levava alimentos e quitutes, todos os membros da corte, infantes, convidados
ilustres e o próprio rei. O início dessas festividades mórbidas era marcado por
procissão seguida de missa e, acompanhando o protocolo, os réus do Santo Oficio
ouviam suas sentenças sendo, posteriormente, queimados vivos diante de sádica
multidão que ganhava quarenta dias de indulgência por comparecer ao local.
Jan Huss, Savonarola e
diversas outras almas de comprovada grandeza, tiveram seus corpos dilacerados
pela sanha odienta daqueles que se arvoravam donos da verdade e, por promoverem
horrendos fratricídios, envolveram-se em sombras perturbadoras.
Dos assassinatos, após
injusta inquirição, ao violento massacre na noite de São Bartolomeu, a
intolerância deu azo à podridão jacente em psiquismos enfermiços, que
flauteavam hediondez ao fornecerem patrocínio a perseguições soezes.
E nesses quadros
alavancadores de amaras lembranças, para as almas que hodiernamente desejam
reabilitação, pintaram-se tristes endividamentos pedindo persolvição urgente.
Como elemento agregador e
fomentador da paz e da concórdia, a tolerância exalta o ser, porquanto é
característica eminentemente humanitária. Propalando ternura intrínseca à
atitude indulgente, este nobre sentimento habita o coração da criatura que
adquire consciência de si e do mundo, entendendo-se como ainda imperfeita e,
por este motivo, passível de erro.
No campo da crença, objeto
deste breve estudo, a tolerância é entendida como coexistência pacífica entre
várias confissões religiosas. Todavia, vitimada pela papalvice ou pela
pusilanimidade, amiudemente é confundida com conivência ou com a inoperância,
desatendendo aos altos propósitos que o entendimento do termo normalmente
faculta.
Magotes de oportunistas,
desejando alargar o número de "seus" fiéis, tentam promover um
amálgama formalista, empanando a essência luminífera da mensagem religiosa,
repletando-a com acessórios de visível incongruência.
Diante do outro e de suas
representações de alteridade, há que se respeitar as diferenças, destituindo os
preconceitos e a violência deles advindas; entretanto, não se sugere abrir mão
da identidade e da coerência frente às crenças ou ideologias que visem cumprir
papel de cunhas desarticuladoras em nossas profissões de fé.
O bom senso, quando
utilizado, inibe atitudes equivocadas que, em nome de conveniências terrenas e
de interpretações ingênuas da caridade, intentam erir princípios doutrinários
lucidamente defendidos por Espíritos nobres, em prol de um sincretismo reles e
ininteligível.
Caso estejamos
identificados com enobrecida mensagem religiosa, seja ela qual for, busquemos
verdadeiramente abraçá-la, dando-lhe oportunidade para aninhar-se em nosso
íntimo, impedindo, porém, quaisquer tentativas de lhe macular a essência a
partir de sentenças parciais ou por meio de peculiar ecletismo.
A intolerância fere e mata
em cólera destruidora.
A conivência desestrutura ideias,
tornando-as incoerentes, ineficazes e mantenedoras de ignorância estagnadora.
A tolerância une e
fortalece as criaturas, pois as estimula seguir o nobilitante preceito cristão,
a regra de ouro universal, que recomenda dispensarmos a outrem tratamento igual
ao que desejarmos receber.
Respeitando a fé alheia, é
de se esperar que tenhamos a nossa respeitada.
(Jornal Mundo Espírita de Outubro de 2001)
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