O abandono
que não se esquece
:: Rosemeire Zago
::
Quantas
vezes, ainda que na presença de alguém, temos a nítida sensação que em qualquer
momento podemos ser abandonados?
Quantas
vezes, diante de um atraso, sentimos verdadeiro pânico?
Quantas
vezes nos desesperamos diante da possibilidade da pessoa amada nos deixar?
Quem viveu o
abandono durante a infância pode sentir um medo incontrolável de ser deixado,
procurando evitar a todo custo ser abandonado novamente.
Quando
falamos de abandono não é apenas em casos em que uma criança é literalmente
abandonada por seus pais, a quem se espera ser amada e cuidada, mas aquelas que
são abandonadas através da negligência de suas necessidades básicas, da falta
de respeito por seus sentimentos, do controle excessivo, da manipulação pela
culpa, ainda que ocultos, durante a infância.
Crianças
abandonadas, psicológica ou realmente, entram na vida adulta, com uma noção
profunda de que o mundo é um lugar perigoso e ameaçador, não confiando em ninguém,
porque na verdade não desenvolveu mecanismos para confiar em si mesma.
O abandono
está diretamente relacionado com situações de rejeições registradas na infância
e que pode se intensificar durante toda a vida, principalmente quando se
vivencia outras situações de rejeição e/ou abandono.
Cada vez que
vivenciamos situações de perda é como se estivéssemos revivendo a situação
original de abandono, do qual dificilmente se esquece. Podemos sim, reprimir,
fugir desses sentimentos, mas raramente conseguimos lidar sem sofrimento diante
de qualquer possibilidade de perda e/ou rejeição.
Quando somos
rejeitados em nosso jeito de olhar, expressar, falar, comer, sentir, existir,
não obtendo reconhecimento de nosso valor, principalmente quando somos
crianças, é inevitável que se registre como abandono, pois de alguma maneira,
ainda que inconsciente, abandonamos a nós mesmos para nos tornarmos quem
esperam que sejamos.
Sente-se
abandonado quem não se sentiu acima de tudo amado e isso pode ser sentido antes
mesmo de nascer, ainda no útero materno.
Pais que
rejeitam seu filho durante a gestação pode deixar muitas seqüelas, em nós,
adultos.
Toda criança
fica aterrorizada diante da perspectiva do abandono. Para a criança, o abandono
por parte dos pais é equivalente à morte, pois além de se sentir abandona, ela
mesma aprende a se abandonar.
Conforme
percebemos, consciente ou inconscientemente, e ainda muito pequenos, que a
maneira com que agimos não agrada aos nossos pais, vamos tentando nos adequar
ou adaptar nosso jeito de ser e, aos poucos, vamos nos distanciando de quem
somos de verdade, agindo de maneira a sermos aceitos.
É quando
começamos a desenvolver o que chamamos de um falso self, a um estado de
incomunicação consigo mesmo, gerando uma sensação de vazio.
O falso self
é um mecanismo de defesa, mas que dificulta o encontro com o self verdadeiro.
É muito
comum que crianças que cresceram em famílias com algum desequilíbrio,
proveniente do alcoolismo, agressividade, maus-tratos, ou qualquer outro tipo
de abuso, tenha sofrido a negação de seu verdadeiro eu.
Crianças que
sofreram em silêncio e sem chorar, ou como alguns relatam: “chorando por
dentro”, podem aprender a reprimir seus sentimentos, pois uma criança só pode
demonstrar o que sente quando existe ali alguém que a possa aceitar
completamente, ouvindo, entendo e dando-lhe apoio, o que nesses casos,
raramente acontece.
Pode
acontecer dessa criança desenvolver-se de modo a revelar apenas o que é
esperado dela, dificilmente suspeitando o quanto existe de si mesma por trás
das máscaras que teve que criar para sobreviver.
Alguns pais,
inconscientemente, numa tentativa de encobrir sua falta de amor – o que é muito
comum, por mais assustador que seja para alguns – declaram muitas vezes seu
amor pelos filhos de forma repetitiva e mecânica, como se precisassem provar
para si mesmos seu amor, onde as crianças sentem que suas palavras não condizem
aos seus verdadeiros sentimentos, podendo gerar uma busca desesperada por esse
amor, cuja busca pode se estender durante toda a vida.
Ficar só
para essas pessoas pode ser uma defesa para evitar novamente o abandono,
gerando um conflito constante entre a necessidade de ser cuidado e o medo de
ser abandonado.
É muito
comum a criança se sentir abandonada em famílias muito numerosas, onde há
muitos irmãos, e os pais não conseguem dar atenção a todos.
Ou quando os
pais constantemente estão ausentes pelos mais diferentes motivos, seja em
função do trabalho excessivo, viagens, doenças, internações constantes, ou até
pela dificuldade em cuidar de uma criança, não conseguindo fazer com que se
sinta amada nem desejada naquela família.
A sensação
de ter valor é essencial à saúde mental.
Essa certeza
deve ser obtida na infância. Por isso que a qualidade do tempo que os pais
dedicam aos seus filhos indica para elas o grau em que os pais as valorizam.
Por outro
lado, a criança que é verdadeiramente amada, sentindo-se valiosa quando
criança, aprenderá a cuidar de si mesma de todas as maneiras que forem
necessárias, não se abandonando quando adulta.
Assim como
crianças que passaram maior parte de seu tempo com pessoas que eram pagas para
cuidar delas, em colégio interno, distante de seus pais, não recebendo amor
verdadeiro, mesmo tendo tudo que o dinheiro pode comprar, poderão ser adultos
como qualquer outra criança de tenha vindo de um lar caótico e disfuncional,
crescendo sentindo-se pouco valiosa, não merecedora do cuidado de ninguém,
podendo ter muita dificuldade em cuidar de si mesma.
Ou seja, a
maneira com que nos cuidamos quando adultos, muitas vezes reflete a maneira com
que fomos cuidados quando crianças.
Precisamos
chegar a ponto de perdoar aqueles que de alguma forma nos abandonaram ou que
nos causaram uma dor profunda.
Para alguns,
essa é uma tarefa fácil, mas temos que admitir que para outros, pode ser
praticamente impossível.
Como perdoar
um pai bruto, que o fazia trabalhar desde muito pequeno ou pedir dinheiro, do
qual depois consumia em jogos e bebidas?
Como perdoar
um pai que abusou sexualmente da filha, psicologicamente do filho?
Como perdoar
uma mãe que trancava os filhos no armário ou no quarto ao lado enquanto se
encontrava com outro homem dentro da casa, ou quando deixava os filhos sozinhos
em casa dizendo que ia trabalhar, quando na verdade ia se divertir?
Como perdoar
pais que sempre ocultaram a verdade, insistindo na mentira?
Como perdoar
um irmão que abusou sexualmente da irmã?
Como perdoar
uma mãe que demonstrava suas insatisfações através de gritos com seus filhos?
Como perdoar
um pai que batia constantemente na mãe na presença dos filhos?
Como perdoar
aqueles que roubaram a infância e inocência de muitas crianças?
Como perdoar
aqueles que o deixaram, o abandonaram?
Não é
possível perdoar se o perdão for entendido como negação do fato, pois
precisamos sentir a dor que ficou reprimida em nossa alma. Perdoar não
significa aceitar, mas se permitir sentir e expressar toda a raiva e dor
reprimida e encontrar caminhos saudáveis que podem transformar esses
sentimentos em experiência e aprendizado.
Ao nos
tornarmos mais conscientes de nossas feridas, entre elas as geradas pelo
abandono, podemos agir sobre aquilo que vivenciamos, aprendendo a respeitar
nossos sentimentos mais profundos, assumindo a responsabilidade pelas mudanças
que podemos nos permitir vivenciar no momento presente.
Não se trata
de regresso ao lar, porque muitas vezes esse lar nunca existiu.
É a
descoberta de um novo lar, o qual cada um de nós pode construir, sem mais se
abandonar.
Rosemeire
Zago é psicóloga clínica, com abordagem junguiana e especialização em
Psicossomática.
Desenvolve o
autoconhecimento através de técnicas de relaxamento, interpretação de sonhos,
importância das coincidências significativas, mensagens e sinais na vida de
cada um, promovendo também o reencontro com a criança interior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário