Antes do Adeus
O que você
faria se tivesse seis meses de vida pela frente? Vítima de um câncer no
pâncreas, o professor Randy Pausch preferiu ensinar seus alunos e filhos a
perseguirem seus sonhos de infância. Conheça os segredos por trás de sua
mensagem, vista por milhões de pessoas na internet e transformada no best
seller “A Lição Final”, e saiba como a medicina e a filosofia começam a
trabalhar juntas para nos ajudar a lidar melhor com nosso destino inevitável
Claudio
Julio Tognolli
Em meados de
2006 ele sentiu uma dor corriqueira no alto do abdome. Semanas à frente,
brota-lhe uma icterícia. Os médicos suspeitam de hepatite. Mas as vozes
incontestáveis da tomografia computadorizada moem, em uníssono, aquele coro
desagradável da verdade sob números: o professor Randy Pausch é portador de
câncer pancreático - aquele que registra a maior taxa de mortalidade dentre
todas as modalidades da doença, com metade das vítimas mortas em seis meses e
96% em cinco anos.
A detonação
surda dessas verdades, antes de gerar aquela gelada sensação de vazio no
fígado, fomentou lhe um dissuasivo criativo: Randy Pausch virou um militante da
vida, numa cálida aula de reiteração do ofício de viver.
Tudo isso
virou um best seller de apenas 250 páginas, "A Lição Final", lançado
no Brasil pela Editora Agir. Num estilo confessional mente cristalino, a obra
coloca em perspectiva uma novíssima tendência da medicina mundial: dotar de
discussões sumamente espirituais os pacientes em estado terminal. "Embora
em geral eu esteja em excelente forma física, tenho dez tumores no fígado e me
restam apenas alguns meses de vida. Sou pai de três crianças e sou casado com a
mulher dos meus sonhos. Seria cômodo ficar me lamentando, mas isso não faria
bem a eles nem a mim", escreve o professor de ciência da computação, nerd
ao osso e um dos maiores especialistas em realidade virtual do mundo.
A trajetória
de Pausch, titular da universidade Carnegie Mellon (EUA), tornou-se notória
quando subiu ao palco diante de um público de 400 pessoas para apresentar sua
palestra de despedida. Cinquenta dias depois, o registro em vídeo já havia
gerado milhões de visitas no YouTube. "Uma coisa é certa: eu não queria
que a última aula se concentrasse em meu câncer. Já remoera o suficiente sobre
a saga de minha doença. Não me interessava discursar, por exemplo, sobre minhas
percepções da doença, como eu a enfrentara ou quanto ela me abrira novas perspectivas.
Talvez muitos esperassem uma palestra sobre a morte, mas eu trataria da
vida", escreve Pausch em "A Lição Final".
O professor,
na tentativa de se pôr a salvo do câncer, tentou de tudo. Submeteu-se à chamada
"Operação Whipple", procedimento batizado em homenagem ao médico que
o inventou, na década de 1930. Esse tipo de cirurgia, até 1970, matava até 25%
dos pacientes a ela submetidos. Por volta do ano 2000, esse risco caiu para 5%.
Foi assim que Pausch teve removidos não apenas seus tumores, mas a vesícula, um
terço do pâncreas, um terço do estômago e parte do intestino delgado. Depois,
passou dois meses no Centro de Oncologia Dr. Anderson, em Houston,
submetendo-se à quimioterapia e a doses cavalares diárias de radiação no
abdome. Seu peso caiu de 83 para 62 quilos, e ele mal conseguia andar. As
urgências pânicas geraram resultados maciços: ele passou a recuperar as forças
e as tomografias não mais registravam sinais de câncer.
Mas coube a
um oncologista, Carter Wolf, dirigir-se à mulher de Pausch, Jai, e decretar o
idôneo testemunho do que estava por vir. "O que estamos tentando fazer é
prorrogar o tempo restante de Randy para que ele possa ter a melhor qualidade
de vida possível. Porque, na situação atual, a medicina não dispõe de recursos
que possam mantê-lo vivo por um período de vida normal." Em seguida,
embora repelindo eventualidades improváveis, Dr. Wolf relatou a Jai o pedido de
Pausch. "Ele falou em aplicar a quimioterapia paliativa [tratamento que
não visa à cura, mas diminui os sintomas e possivelmente prorroga a vida por
alguns meses] e buscar meios para mantê-lo bem enquanto o fim se
aproxima." E isso vem sendo feito desde então.
Numa
imorredoura atmosfera de esperança, o livro de Pausch é, sem dúvida, um
astrolábio poderoso para tratativas da morte. Ele simplesmente apaga esse
vocábulo do dicionário e o troca pelo apego à vida. E, como bom cientista que
é, o professor sistematizou alguns conselhos: o tempo deve ser administrado com
precisão, assim como o dinheiro; é sempre possível mudar de plano, desde que se
tenha outro; pergunte a si mesmo: está gastando tempo com as coisas erradas?;
desenvolva um bom sistema de arquivos; repense o telefone; aprenda a delegar
tarefas; tire férias, que "não serão reais se você ficar lendo e-mails ou
procurando mensagens".
E, não sem
uma dose de ironia e conservadorismo, Pausch decreta: "Prefiro sempre as
pessoas sóbrias às modernosas, porque o modernoso tem vida curta, e o sóbrio é
duradouro. A sobriedade tem sido altamente subestimada. Ela vem da essência, ao
passo que o modernoso tenta impressionar com base na superfície. Gente
modernosa adora a paródia. Mas não existem paródias eternas, não é mesmo?
Respeito mais as pessoas sóbrias, que realizam algo capaz de durar gerações e
que os outros sentem necessidade de parodiar".
A saga de
Pausch é emblemática de toda uma tendência, digamos, espiritualizante, na qual
muitos médicos e terapeutas têm tentado aninhar-se em nome do bem-estar do
paciente. Esses cuidados têm ganhado a definição genérica de "paliativos".
O termo deriva do vocábulo latino pallium, que significa manto ou coberta.
"Quando a causa não pode ser curada, os sintomas são ‘tapados’ ou
‘cobertos’ com tratamentos específicos, como analgésicos. Em inglês, o termo
pode ser traduzido como aliviar, mitigar, suavizar. Refere-se ao care (cuidar)
em vez de cure (curar), segundo os pioneiros ingleses", diz Léo Pessini,
professor no mestrado de bioética do Centro Universitário São Camilo, em São
Paulo. Ele é autor do texto "Vida e Morte, uma Questão de Dignidade",
parte do livro "A Arte de Morrer: Visões Plurais" (Editora Comenius),
organizado por aquele que é tido como o maior representante, no Brasil, dos
médicos que ajudam pacientes em seu caminho final: Franklin Santos, geriatra que
comanda a cadeira de pós-graduação em emergências clínicas, na Faculdade de
Medicina da USP.
Coordenador
do programa Tanatologia, Curso de Educação para a Morte: uma Abordagem Plural e
Interdisciplinar, Santos é categórico: "Até meados do século 20, o assunto
ainda era um tabu no mundo acadêmico. Para a medicina e a filosofia ocidentais,
a morte torna-se, muitas vezes, um ato solitário, mecânico e desumano. Como consequência,
ela passa a ser não só temida como negada", diz o especialista em
tanatologia (do grego tanathos=morte e logos=estudo).
Despreparo
existencial
Santos
constata a realidade viva e constante da morte nos corredores dos hospitais,
sobretudo para aqueles que trabalham na área da saúde - médicos, enfermeiros,
psicólogos, assistentes sociais -, notadamente nas salas de emergência e UTIs.
"Observa-se aí um despreparo filosófico, psicológico, técnico e até mesmo
existencial dos profissionais para lidar com a morte iminente, para falar sobre
ela com os familiares dos assistidos e como discuti-la de maneira
interdisciplinar", afirma o médico.
A morte é
uma experiência humana universal. Questões sobre o seu significado e o que
acontece quando morremos são preocupações centrais em todas as culturas desde
tempos imemoriais. Diante dela, o ser humano coloca-se frente a questões
essenciais. Morrer bem, ter uma morte tranquila, bem assistida, com amparo
médico, social, familiar - tudo isso faz parte do processo educativo para a
morte. Trata-se de educar a sociedade para cercar o ato de morrer dos melhores
cuidados possíveis. Mas a educação para a morte vai além, porque toca em todos
os aspectos interdisciplinares antes mencionados e deveria começar desde as
primeiras fases da infância, constituindo um elemento da educação das novas
gerações. Eis as bases do curso de tanatologia desenvolvido por Santos na USP.
Discípulo da
norte-americana Elisabeth Kubler Ross, papisa da tanatologia médica, o geriatra
divide as fases de gente que enfrenta o mesmo problema que Randy Pausch da
seguinte forma: "Primeiro há a negação. Depois vem a raiva. Em seguida,
aquilo que Ross chama de ‘barganha’ - como as promessas a Deus, digamos. E aí
vem a depressão, que precisa ser vivenciada para que a pessoa interiorize seu
problema. Por fim, alcança-se a aceitação". Mas Santos identificou um
sexto comportamento. "A esperança está sempre presente, em todas essas
fases. Sabe por quê? Simplesmente porque ela é a última que morre", diz.
O médico
informa que, na Europa, a tendência é "que até médicos discutam coisas
como pós-morte". E relata casos de cegos que, após paradas cardíacas,
puderam relatar com detalhes "como eram as roupas, as expressões e os
rostos dos médicos que estavam tentando salvá-los". Tudo isso, refere
Santos, tem levado a medicina a ser multidisciplinar na tentativa de quebrar
seus próprios tabus. "O paciente terminal deve ressignificar seus valores,
estabelecer prioridades e equacionar as pendências afetivas", diz.
Aparentemente, Pausch tem alcançado esse rumo nos instantes derradeiros de seu voo.
A tendência
de humanizar a morte e dar ao paciente capacidades plurais de rever sua
situação tem outros pontos de excelência no Brasil em iniciativas ligadas ao
budismo, em especial no Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, criado pela
terapeuta Bel César. Formada em psicologia clínica e em musicoterapia no
Instituto Orff, em Salzburgo, na Áustria, ela escreveu cinco livros sobre
filosofia budista tibetana e é conhecida internacionalmente pelo trato de
pacientes terminais. "Ninguém muda, jamais, porque está diante da morte. O
que muda é o desejo de mudar, a pessoa amadurece no confronto com desafios. A
chave está no desejo de mudar", diz Bel.
De fato, o
poder da terapia é tsunâmico quando aplicado com eficácia em pacientes
terminais. Até mesmo um cientista lógico como Sr. Spock tem seu lado Capitão
Kirk aflorado por ela. Analise as palavras de Randy Pausch: "A terapeuta
que eu e Jai frequentamos tem me ajudado bastante a descobrir estratégias para
evitar meu descontrole durante os estressantes exames periódicos da doença.
Passei boa parte da vida duvidando da terapia. Hoje, contra a parede, vejo que
pode ser extremamente útil. Gostaria de visitar departamentos de oncologia
explicando isso para pacientes que tentam resistir sozinhos."
Entre a
terapia e a espiritualidade
O engenheiro
Claudio Pineda é o coordenador da equipe de voluntários que atuam no Centro de
Dharma da Paz. "Prestamos serviços aos necessitados independentemente de
sua classe social, credo, raça e religião. Nosso atendimento é complementar à
medicina ocidental e está pautado na energia de amor e compaixão", diz.
Quanto aos outros credos, muitos têm posições firmes quanto à morte assistida.
Já a jornada
do presbiteriano Randy Pausch tingiu-se de poucas matizes religiosas. "Fui
criado por pais que acreditavam que a fé era algo muito pessoal. Não discuti
religião em minha palestra de despedida, porque queria falar sobre princípios
universais que se aplicam a todas as crenças", escreve em "A Lição
Final". Mas a fé exerce seu papel: "Desde que recebi o diagnóstico, o
pastor tem sido prestativo".
Noves fora,
Pausch tornou-se uma celebridade instantânea. Seu ídolo William Shatner (sim, o
Capitão Kirk de "Jornada nas Estrelas") enviou-lhe uma foto
autografada com uma mensagem positiva. Al Gore discursou ao seu lado na
Carnegie Mellon. E George W. Bush mandou-lhe uma carta com o selo presidencial.
Isso sem falar nas milhares de mensagens que chegam até ele. Agora o mundo quer
saber de sua morte.
Há quem
chame de curiosidade mórbida. Outros preferem celebrar seu exemplo. Em
entrevista publicada na revista "Time" em abril, respondendo às
questões enviadas pelos leitores, Pausch não escondeu que os afagos midiáticos
e de anônimos lhe fazem bem: "Tanta gente preocupada comigo protege meu
espírito".
Até o
fechamento desta edição, em 18 de junho, o site no qual o professor atualiza as
informações a seu respeito segue mesclando esperança e más notícias. "Tive
um ótimo Dia dos Pais [nos EUA, comemorado em 15 de junho]. Quanto à minha
saúde, estou me recuperando da última sessão de quimioterapia. Minha tomografia
mais recente mostrou que o câncer segue se espalhando, mas a taxa de
crescimento é mais lenta do que deveria ser, o que é bom." A aula de Randy
ainda não acabou. **
Matéria
publicada na Revista Galileu, em julho de 2008.
Pedro
Vieira* comenta
O ser humano
é o único animal que tem consciência de sua própria morte. Essa consciência
pode ser exógena, quando diz respeito à morte dos outros (e com ela lida-se
mais facilmente, às vezes com um certo desconforto) ou endógena, quando trata
da própria morte (e aí vemos busca da fuga em massa da ideia no Ocidente).
Muitas
religiões tratam da morte muito mais de forma exógena, estudando a morte como
se fosse uma entidade externa, controlada por outra igualmente exterior - Deus
- que neutraliza a primeira. Dessa forma, buscam situar o ser humano fora do
próprio problema do fim físico, dando-lhe aparente tranquilidade. De uma forma
ou de outra, está o homem sempre buscando fugir de seu destino.
Embora o
Espiritismo busque mostrar - e provar - que a morte física é apenas parte de um
processo contínuo de progresso, ainda há os espiritistas que a temem. Assim
falou o Prof. Allan Kardec em O Céu e o Inferno: "Já não é somente a
esperança que os sustenta, mas a certeza que os conforta", referindo-se aos
espíritas - donde podemos concluir que se algum espírita tem medo de morrer não
é espírita no sentido completo conforme entendido pelo Codificador.
Vamos
entendendo que encarar a morte com serenidade (de forma real, não apenas
aparente) é uma atitude de Espíritos mais esclarecidos muito mais do que
espíritas ou não-espíritas. O caso da reportagem mostra claramente isso: um ode
à vida e não à morte. Embora haja uma certa confusão entre a busca da qualidade
de vida feita pelo Prof. Randy Pausch e a eutanásia, são assuntos completamente
distintos e um deles (o primeiro) o Espiritismo apoia e incentiva e o outro (o
segundo) não recomenda, como uma forma de suicídio.
Na
realidade, a Doutrina Espírita é, com o Prof. Pausch, um convite à vida. Ao
contrário do que se diz, o Espiritismo não é para os mortos, mas para os vivos,
para que, sabendo da morte física (e da vida espiritual), vivamos melhor,
aproveitemos melhor a oportunidade de estarmos aqui, saibamos regular a
importância do que nos cerca, com confiança e paz.
Agradeçamos ao Prof. Randy por transformar sua morte numa
lição de vida.
* Pedro Vieira é expositor e médium espírita. Colabora com o
centenário Centro Espírita Cristófilos e com o Centro Espírita Léon Denis, no
Rio de Janeiro, além de algumas outras casas.
** Randy Pausch morreu no dia 25 de julho de 2008 em sua
casa em Chesapeake, Virginia.
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