O Herói
Em nosso
relacionamento com o mundo, podemos nos colocar numa outra postura, a Postura
de Herói. Muitas vezes, num esforço para sair da postura de Vítima, caímos no
extremo oposto. Somos vítimas quando nos sentimos determinados cem por cento
pela realidade, e bancamos o herói quando sentimos que a realidade é cem por
cento determinada por nós.
O
"herói" é o dominador, o controlador, aquele que se julga senhor e
dono das outras pessoas, é aquele que cria a visão da realidade como resultado
de sua própria vontade, é aquele que acha que só existem duas alternativas no
relacionamento: ou ser dominado ou ser dominador, ou ser escravo ou senhor, ser
menos ou ser mais, ser perfeito ou ser a pior coisa que existe. É a postura do
oito ou oitenta. O herói extrai alegria da tristeza do outro, ele se sente bom
se provar que o outro é mau. O herói, deste modo, peca por excesso, sente-se o
único responsável pelo que está ocorrendo à sua volta e, por isso, assume mais do
que pode cumprir. Ele se in surge contra a realidade e vai além do que lhe é
possível. Se na postura de vítima nos negamos, na postura de herói nós negamos
o outro, sentimo-nos o único sujeito da relação humana e consideramos as outras
pessoas como objetos.
O herói se
coloca em nível superior ao das outras pessoas, escondendo um profundo
sentimento de inferioridade. É o todo poderoso, o que sabe tudo, o que sempre
tem razão, o imbatível, o melhor. É aquele que perdeu a simplicidade de estar
no mundo, é o que não sabe e não sabe que não sabe; daí, a sua dificuldade em
aprender. Supõe saber tudo e perde com isso a capacidade de perguntar, a
capacidade espontânea de fazer perguntas, de perguntar o que não sabe. Em
contrapartida, seu comportamento é sempre o de ensinar, de julgar, de analisar
e de orientar os outros. É o dono da verdade. Por isso, nunca diz: "Eu não
sei". Nunca pede ajuda. Ele se julga como padrão dos outros e se relaciona
com o mundo através de uma avassaladora programação de dogmas, de verdades
feitas, porque as pessoas serão boas, honestas, verdadeiras, inteligentes, se
coincidirem com o seu modo de pensar, de sentir e de agir.
Internamente,
o herói raciocina que as pessoas dever ser feitas à sua imagem e semelhança, as
pessoas dever ser da maneira que ele quer que elas sejam, os pensamentos das
outras pessoas terão de ser os seus próprios pensamentos, o comportamento dos
outros tem de ser como ele acha que deve ser.
O herói é
semelhante a Proskrusts na lenda antiga, que punha todas as pessoas numa cama
do mesmo tamanho. Se as pessoas fossem compridas, ele cortava-lhes as pernas;
se fossem muito curtas, esticava-as até que coubessem na cama. Há pessoas que
querem enquadrar os outros no seu moralismo, nos seus dogmas, nas suas
verdades, e isto é a pior forma de tortura. Por isso, o herói é aquele que
sofre, esconde ao máximo o seu sofrimento e gosta de fazer os outros sofrerem.
As suas críticas são tentativas de enquadrar alguém nos seus padrões.
O herói é a
pessoa que não suporta as diferenças, ignorando que aquilo que faz o mundo ser
mundo é a união das diferenças, ignorando também que só podemos amar outra
pessoa por suas diferenças em relação a nós, porque naquilo em que ela é igual
estamos amando não a ela, mas a nós mesmos.
Só podemos
crescer a partir da diferença. A função da diferença é o crescimento. Só
podemos aprender com o outro naquilo que ele pensa diferentemente de nós,
porque naquilo em que ele pensa igualmente não há nenhuma descoberta, mas
apenas confirmação do que já sabíamos. O herói, na sua visão de onipotência
evita ver e aceitar os limites do mundo. Para ele não existem limitações de
tempo, de espaço, de cor, normas, saúde e condições. Há nele a crença na
possibilidade de ser super: super-homem, super-profissional, supercapaz,
superpai, supermãe, super-inteligente. É o Delírio da Onipotência, é a
interiorização de um ideal de vida baseado na possibilidade de ser um
super-herói; é a crença de que podemos ser mais do que nós somos. E sempre que
bancamos o herói em nosso encontro com o mundo, depois nos sentimos vítimas. A
toda atenção excessiva corresponde depois uma depressão, a todo excesso
segue-se naturalmente um recesso. Os nossos malogros e nossas frustrações advêm
de termos procurado ser e realizar mais do que éramos humanamente capazes.
Essa lei é a
mesma lei física de Newton: "A toda ação corresponde uma reação igual e
contrária". Se não levarmos em conta os limites das situações e agirmos
como se elas não existisse, teremos em nossa vida, mais tarde, a resposta deste
exagero em forma de sofrimento, seja ele físico, psicológico ou social. Quando
nos sentimos humilhados e ofendidos, melhor será nos perguntarmos onde, como e
quando quisemos ser mais do que somos, perguntar a quem quisemos dominar e
controlar, e não conseguimos, pois só estamos sofrendo as consequências de
querermos ser mais do que a própria realidade.
O herói, na
sua tentativa de manipular os outros, torna-se obcecado por controle, por
poder, e usa todo tipo de truques. Assim, ele banca o autoritário, o durão, o
frio, o machão, o estúpido, o teimoso, o corajoso, o desafiador, aquele que
quebra mas não verga. Herói é o que esconde o medo sob a capa da coragem e
depois de frustrada a sua tentativa de controlar os acontecimentos, vai bancar
o desamparado, o desprotegido, o humilhado, o ofendido, o magoado e o
injustiçado. E é assim que perdemos a nossa liberdade individual. O mais
interessante a respeito de uma pessoa obcecada pelo desejo de controlar o
semelhante, é que ela sempre acaba por ser controlada, ela se prende na própria
teia, tecida para prender os outros.
Quando
aprisionamos alguém, nós também nos aprisionamos. O policial que monta guarda à
porta da cela para que o marginal não fuja, está tão preso quanto ele. O herói
é como o diamante, fere todo mundo e não quer ser ferido por ninguém. É o durão
inflexível e, em nome da personalidade, ele quer ser um só, igual em todos os
lugares com todas as pessoas e em todas as circunstâncias. As pessoas e o mundo
que se modifiquem para se adaptarem a ele.
Ele é o
centro do universo, ele é um ponto fixo em torno do qual devem girar todas as
outras pessoas. E nessa fantasia de ser permanente, de ocupar uma posição fixa
na vida, ele se agarra a ela com unhas e dentes. Com o inabalável propósito de
não arredar pé dali, vai tendendo pouco a pouco a se confundir com os seus
papéis na vida, as suas categorias, os seus adjetivos. Ele já não é ele, é
apenas o chefe, o pai, o ocupante de um cargo, o rico, o inteligente, o famoso,
o amado, o sensato. E assim, vai abdicando do seu universo interior, da sua hu
manidade, da sua vida verdadeira, da sua origem simples e alegre, abdicando do
seu Ser, que é parte de um universo. Passa mecanicamente a ser uma peça
sofredora, escrava e escravizante.
Setenta por
cento do nosso organismo é água e isto deveria nos mostrar o quanto o organismo
é flexível, mutável, adaptável às situações. A autoridade não vem das pessoas,
mas dos fatos, da realidade da situação. Ter personalidade humana é ser capaz
de fazer uma síntese com o ambiente que nos cerca, não ser mais ou menos
adaptado às circunstâncias, mas estar com elas em harmonia, em ligação, em
reciprocidade e integração.
O herói se
revolta contra a realidade, ele está sempre em desequilíbrio com relação ao
mundo. Na postura de herói, somos resistentes às mudanças, às mutações do
mundo, porque no herói existe a crença e o desejo de ser imutável. E a
principal causa dessa reação às mudanças se encontra no fato de que qualquer
alteração significativa nos faz lembrar que tudo evolui, que esta vida passa e
que um dia nós vamos morrer.
Para não
olharmos de frente o inevitável, aprendemos a fingir que controlamos a nossa
existência e a dos outros e vamos creditando falsamente que é possível
permanecer sempre o mesmo num mundo cuja característica básica é a mutação. E
neste afã de impedir que a vida flua como um rio, pretendendo controlar o
futuro, o desconhecido, o que ainda não aconteceu, transformamos nossa vida
numa competição, numa luta extenuante contra o tempo e então agimos como um
cavalo de corrida.
Isto aparece
na forma de Pressa e de Preocupação. A pressa e a preocupação provêm do fato de
fazermos nossa felicidade depender sempre da expectativa de alguma coisa no
futuro. Viver sempre em função do futuro, do que vem, deixa-nos sem contato com
a fonte ou centro da vida, porque o amanhã nada significa, a não ser que esteja
em completa ligação com a realidade do presente que se vive.
Nós nos
preocupamos porque nos sentimos inseguros e desejamos segurança, e porque ainda
não compreendemos que não existe segurança na vida humana. Ponderemos como é
contraditório desejarmos ser estáveis e seguros num universo cuja própria
natureza se caracteriza pela fluidez e pela instantaneidade.
Não há
absolutos para algo tão relativo como a vida. Os nossos desejos voltados para o
futuro são empecilhos que nos dificultam assumir agora a responsabilidade por
eles, e assim preocupamo-nos para não nos ocuparmos com o que é possível fazer
agora. A pressa e a preocupação são um desejo de ter certeza de um futuro
brilhante e tranquilo.
O poder de
usufruir as coisas agradáveis que nos estão acontecendo é-nos negado pela
preocupação constante. Nossa mente está preocupada com algo que ainda não está
presente. O dom da previsão de pensar sobre o futuro, constitui a principal
realização do cérebro humano. Entretanto, o modo pelo qual geralmente usamos
este poder pode destruir todas as suas vantagens, pois é de pequena utilidade
para nós prever possíveis acontecimentos no futuro, se isto nos tortura, se nos
torna incapazes de viver plenamente o presente.
Somos heróis
quando estamos sempre nos preparando para viver, ao invés de viver. Se para
termos um presente agradável, precisamos da certeza de um futuro feliz, podemos
desistir da felicidade. Tal certeza é impossível de se obter. Sempre haverá o
desconhecido, jamais conseguiremos controlar o imprevisto.
Não é que
não tenhamos motivo para as nossas preocupações - apenas elas são inúteis. A
vida só se vive de improviso, é sempre de repente, no rascunho, não se pode
passar a limpo. Não apressemos o rio, ele corre sozinho.
Bem-aventurados
aqueles que conseguem deixar a vida fluir e harmonizar-se com ela, sejam quais
forem as circunstâncias. O nosso caminho de felicidade é o caminho da
Adaptação. Não confundamos adaptação com acomodação. A adaptação é uma mudança
harmônica dentro da realidade, levando em conta as nossas possibilidades e as
possibilidades dos outros.
Nós somos
nós e o mundo é o mundo e nós somos um com o mundo. Fazemos parte de um
universo, fazemos parte de uma sociedade, fazemos parte de uma família, fazemos
parte de uma empresa e só haverá dor psicológica quando, ao invés de aceitarmos
o nosso papel de parte, nós quisermos ser o Todo.
Sábio é
aquele que desistiu de enquadrar as pessoas, o mundo e o futuro nas suas
concepções. Sábio é aquele que, através de uma harmonia pessoal, consegue
sentir o seguinte: "Faço parte e quero cada vez mais integrar-me e
adaptar-me à vida que canta e cai, a vida que sofre e festeja em volta de
mim". Sábio é aquele que desistiu de ser o universo e resolveu apenas
viver com o universo.
Antônio Roberto Soares – Psicólogo
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