O Espiritismo Frente ao Problema Social
As convulsões políticas e sociais do
momento histórico em que vivemos nos obrigam a separar nossa atenção dos
problemas de índole psicológica para fixá-la nos de índole econômica e social,
que também ocupam uma das fases de nossos estudos e exigem ser tratados à luz
do Espiritismo.
Vivemos uma hora de inquietação
social, de incerteza política, de crises econômicas, em que as nações parecem
ter perdido o controle de seus atos, nada se entende ou aparenta não
entender-se, em que as ambições de mando e de poder romperam o freio das velhas
democracias para tomar, pelo império da revolução, as rédeas do mundo, em que a
defesa do atual regime social se mostra de cara lavada empunhando o fuzil da
ditadura. Dizemos com a cara descoberta porque, de fato, sempre têm existido,
ainda que disfarçadas com a máscara de uma falsa democracia. A esta ditadura
dos de cima responde a ditadura dos de baixo e em torno destes dois extremos
giram e se chocam as tendências em aparente confusão.
Estas convulsões que se notam em
todas as ordens da vida social, no mundo inteiro, não são mais que os sintomas
do novo parto da história: os estertores de uma sociedade que agoniza e os
anúncios de uma nova sociedade que nasce.
Ante o que vai e o que vem,
acrescente-se que os espíritas nos inclinamos decididamente pelo último. Somos
evolucionistas, amamos a justiça, defendemos a verdade e trabalhamos ansiosos
pelo bem, tanto individual como social: desejamos uma sociedade melhor e
lutamos por seu pronto advento.
Careceria, portanto, de exato
conhecimento do Espiritismo quem acreditasse que este tem por única missão
ocupar-se das coisas do espírito, dos problemas da alma, fazendo dele uma
ciência puramente experimental para estabelecer a certeza de nossa imortalidade
e buscar a felicidade para depois desta vida. Se é este, certamente, seu objeto
primordial, porquanto constitui a base sobre a qual repousa toda sua estrutura
ideológica, não se circunscreve, nem poderia circunscrever-se somente a isto,
sem deixar de cumprir sua função profundamente revolucionária em todas as
ordens da vida, tanto individual como social.
O Espiritismo tem objetivos, horizontes
mais dilatados: é, aparte de uma ciência experimental e filosófica, uma
ideologia social, que persegue uma finalidade superior neste mundo onde, junto
aos ideais mais generosos, mas sem base sólida, se encontram as tendências mais
conservadoras e egoístas, os ódios mais perversos, as misérias morais, as
ambições mesquinhas e repudiáveis.
O Espiritismo não considera seus
adeptos desvinculados da sociedade, nem os concebe felizes e satisfeitos
contemplando a dor e a miséria dos deserdados frente ao prazer desenfreado dos
detentores de posses. Para o Espiritismo o homem é um ser social e, portanto,
ensina-o a ser solidário com a sociedade em tudo que tenda ao seu melhoramento,
à maior justiça e bem-estar de todos e de cada um.
Ainda que explique a razão de ser de
muitos males individuais e sociais, baseando-se na lei de causalidade espírita
– o que não significa justificá-los – não considera a sociedade em estado
estático, mas dinâmico, ou seja, evoluindo continuamente para uma finalidade
superior que se realiza com o tempo e em proporção aos esforços nesse
sentido.
A doutrina espírita – que, por
ignorância, muitos consideram conservadora e outros, por interesse, aceitam-na
como apoio de todos os latrocínios e iniquidades sociais – é tão profundamente
revolucionária e ao mesmo tempo construtiva, que nada fica a seu passo de
injusto, mau e imoral, que ela não o destrua e nada destrói que não seja capaz
de substituir com edificações melhores, mais sólidas. Deste ponto de vista,
encaramos, como espíritas, os problemas sociais.
Temos uma finalidade social que não
difere dos ideais mais avançados, senão pelo conceito espiritual,
indefinidamente progressivo que temos do ser humano.
Repudiamos o regime de exploração e
de desprezíveis privilégios em que vivemos, a moral hipócrita e interesseira que
dela se desprende, a justiça unilateral e ajustada às prerrogativas econômicas,
o latrocínio dos governantes e a atitude dos governos que, amparados em leis
constitucionais injustas e anacrônicas – quando não em forças arbitrárias a
estas mesmas leis
– creem-se senhores dos povos, quando
só deveriam ser seus servidores e que, sob pretexto de administrar os interesses
gerais das nações, asseguram o monopólio e a riqueza desmedida de uns, à custa
do trabalho e da miséria de outros; repudiamos também a falsa educação que se
ajusta às convenções sociais e às leis que as defendem, e estas mesmas leis que
fazem do crime legalizado uma virtude patriótica e da verdadeira virtude, um
delito punível que ampara, enfim, o assassinato, o roubo e as imoralidades e,
como uma missão, castiga sem piedade delitos menores, que derivam da mesma injustiça e imoralidade
que a lei ampara. Não concordamos com a política de rapina internacional que
faz com que os países mais fortes se apossem dos mais débeis e exerçam
hegemonia sobre eles, nem com as guerras fratricidas, que não têm outra
finalidade por parte dos que as fazem que a de assegurar o império capitalista
de umas nações sobre outras, de satisfazer ambições econômicas ou, quando não,
afiançar o regime de exploração humana, impedindo que outros, mais em
concordância com a justiça e o direito natural, abram caminhos.
Enfim, o espírita – pelo menos o que
o é de verdade – não pode deixar de repudiar tudo isto e o pior que existe
neste mundo, por ignorância ou maldade dos homens. E, ao repudiá-lo, aspira,
naturalmente, a um regime de liberdade, de igual economia e de verdadeira
fraternidade, onde a justiça não seja um mito, o direito natural não seja
preterido pelo direito do mais forte e do mais astuto, onde o bem-estar seja
comum, a paz do mundo seja uma verdade, a democracia não seja um ardil, a
caridade não seja uma aviltante esmola, nem o amor uma veleidade, nem a
solidariedade uma especulação.
Mas, será possível que neste mundo
destinado, segundo crença geral, à dor e à expiação, neste inferno de provas, neste
presídio de almas condenadas ao suplício, possa realizar-se tal progresso? Nele caberão tantas coisas boas? Não se opõem
ao desejo de conquistá-las os ensinamentos do Espiritismo?
Creio que tudo isto é exequível pela
evolução da sociedade humana, pode chegar a realizar-se e tal realização, em
tempo mais ou menos próximo, depende dos esforços que os homens de bons sentimentos
e mais capacitados e decididos na obra da transformação social façam para
consegui-lo. E que, longe de ser contrário aos ensinamentos do Espiritismo, é a
essência mesma de sua doutrina. Mas, ainda quando não fosse realizável, sempre
seria uma nobre aspiração, uma função elevada de nossa vida, o tender a eles e
ao fazê-lo poderemos estar seguros de não haver confundido nosso caminho.
Para demonstrar que o que vimos
sustentando não é uma simples opinião pessoal concebida à margem da doutrina
espírita, vou expor, o mais simplesmente possível, alguns conceitos
sociológicos extraídos das obras de
Allan Kardec, porque o ensinamento
nelas exposto não leva o selo de uma só personalidade; é o conteúdo filosófico
de muitas opiniões que, ainda que não sejam possíveis, refletem unanimemente a
essência da doutrina. Ainda porque, Kardec, o mais humanitário dos mestres
espiritistas, que fez dos evangelhos seu estandarte, da caridade a maior
virtude e a atitude mais nobre da humanidade, não pode ser suspeito de
“anarquista perigoso”.
Tomarei, pois, do mencionado autor,
somente o que se relaciona com o problema social, tirado das páginas de seus
livros, que se encontra misturado com outros ensinamentos de ordem moral.
II
Kardec, respondendo (*) à pergunta
sobre se a desigualdade de condições sociais é uma lei natural, diz: (**)
“– Não, é
obra do homem e não de Deus”. (Item 806).
À pergunta sobre se esta desigualdade
desaparecerá algum dia, responde:
“– Só as
leis de Deus são eternas. Não vês como cada dia se apaga pouco a pouco?
Semelhante
desigualdade desaparecerá com o predomínio do orgulho e do egoísmo...”.
(Idem).
(*) Allan
Kardec.
O Livro dos
Espíritos.
(**) Com
maior propriedade, deveria dizer o autor, estas são respostas dos espíritos
ante as perguntas formuladas por Kardec.
(Nota da
Ediciones Cima)
“– Que se deve pensar dos que abusam da
superioridade de sua posição social para oprimir, em seu proveito, o mais
fraco?”
“– Merecem
ser anatematizados — afirma — infelizes deles! Serão também oprimidos...”.
(Item 807).
“– A
desigualdade de riqueza não tem por origem a desigualdade das faculdades?”
“– Sim e não
– responde. Que dizes da astúcia e do roubo?”. (Item 808).
Ante a afirmação de que a riqueza
hereditária não é fruto de más paixões, responde:
“ – Que sabes? Volta às suas origens e verás se é
sempre pura. Sabes se em um começo foi fruto de uma espoliação ou de uma
injustiça? Mas sem falar da origem, que pode ser má, crês que a cobiça da
riqueza, mesmo da bem adquirida, os desejos secretos que se concebem de possuí-la o quanto antes, são sentimentos
saudáveis?...”. (Idem).
Respondendo se é possível a igualdade
de riquezas, diz:
“– Não, não
é possível. A diversidade de faculdades e de caracteres a ela se opõe”. (Item
811).
Entenda-se bem que Kardec se refere
aqui à “igualdade absoluta” que temos sublinhado de propósito para que não se
confunda com a igualdade relativa ou proporcional, ou melhor, com a igualdade
de deveres para produzir a riqueza em proporção às forças e atitudes de cada um
e à igualdade de direitos para satisfazer as necessidades e gozar das riquezas
na mesma proporção. É o que, em Sociologia, se entende por igualdade econômica
e social, as tendências socialistas perseguem, o Espiritismo sustenta em seus
princípios e os espíritas proclamamos como finalidade social e seguimos de
perto nossa moral superior e com a crítica sadia, fecunda, da sociedade
atual. A palavra “riqueza” tem aqui um
significado também muito relativo, se se analisa à luz meridiana da seguinte
sentença de Kardec:
“A
propriedade só é legítima se foi adquirida sem prejuízo de outrem”. (Item 885).
E desta outra não menos luminosa:
“A lei de
amor e de justiça proíbe que se faça a outrem o que não queremos que nos seja feito,
condena também todo meio de aquisição que fosse contrário a essa lei”. (Idem).
Deste ponto de vista, não há riqueza
propriamente bem adquirida e o único que, em tal sentido, pode considerar-se
legítimo é o relativo bem-estar que cada um possa conquistar com o próprio
esforço e sem prejuízo dos demais que, de nenhum modo constitui uma
riqueza. Se a igualdade (absoluta) de
riquezas não é possível, sucede o mesmo com o bem-estar?
“– Não —
responde Kardec —; mas o bem-estar é relativo e cada qual poderia desfrutar
dele se todos o entendessem bem...”. (Item 812).
E logo acrescenta:
“Os homens
se entenderão quando praticarem a lei de justiça”. (Idem)
Vejamos agora como Kardec — por cujo
intermédio se expressam seus colaboradores espirituais – entende este relativo
bem-estar do homem, considerado como membro da sociedade:
“... porque
o verdadeiro bem-estar — diz — consiste no emprego do tempo a gosto de cada um
e não em trabalhos que não são de seu agrado, e como cada qual tem aptidões
diferentes, nenhum trabalho útil ficará por fazer. Tudo está equilibrado e o
homem é quem quer desequilibrar-se”.
Neste último parágrafo está exposto
com toda clareza e perfeitamente de acordo com as mais avançadas tendências
socialistas (*), o conceito ideológico da distribuição do trabalho, segundo as
aptidões de cada um e sem imposição de tempo, conceito que temos exposto mais
de uma vez na imprensa espiritualista e que constitui um dos princípios
fundamentais da justiça social, agregado ao trabalho “útil”, material ou
intelectual, imposto pela necessidade de viver e pela mesma lei de associação a
todos os homens por igual, segundo suas forças e suas aptidões; conceito que
emana da infinidade de passagens das obras citadas, em tudo concordante com a
essência da Doutrina.
(*) Para
compreender adequadamente as referências que Porteiro faz com frequência aos
ideais socialistas recomendamos o estudo do livro O Pensamento Vivo de Porteiro,
do psicólogo e economista Jon Aizpúrua, no qual se aclara o contexto histórico
e social em que Porteiro viveu e escreveu, assim como sua identificação com uma
proposta socialista de natureza democrática, humanista e espiritualista, com
diferença das tendências socialistas de corte materialista e ditatorial. (Nota
da Ediciones Cima).
Agreguemos, todavia, ao exposto,
algumas ideias complementares que se referem à justiça social e ao direito
natural:
“A justiça —
diz — consiste no respeito aos direitos de cada um”. (Idem 875).
“De tal modo
é natural que vos revoltais à ideia de uma injustiça” (873).
“Os direitos
naturais são os mesmos para todos os homens, desde o menor até o maior”. (Item
878)
Entenda-se
bem que Kardec se refere aos direitos naturais, cuja igualdade reconhece, e não
aos concedidos pela lei civil, segundo suas próprias palavras,
“... tem
criado direitos e deveres imaginários (diríamos iníquos) que a lei natural
condena”. (Item 795).
Em outra passagem, diz:
“ – O homem
necessitado de pedir esmola se degrada moral e fisicamente, se embrutece. Em uma
sociedade baseada na lei de Deus e na justiça, deve prover-se o fraco sem
humilhá-lo. Deve assegurar-se a existência dos que não podem trabalhar, sem
deixar sua vida à mercê da casualidade e da boa vontade”. (Item 888).
E completa o pensamento com este
outro não menos revolucionário na ordem das ideias sociológicas. Referindo-se à
civilização, diz que unicamente pode existir povo mais civilizado
“Onde as
leis não consagrem nenhum privilégio e sejam as mesmas, tanto para o último
como para o primeiro, onde se distribua a justiça com menos parcialidade; onde
o fraco encontre sempre apoio contra o forte; onde melhor se respeite a vida,
crenças e opiniões do homem; onde menos infelicidade haja, enfim, onde todo
homem de boa vontade está sempre seguro de não carecer do necessário”. (Item
793).
“As leis
humanas – diz em outras passagens – são mais estáveis à medida que se aproximam
da verdadeira justiça, ou seja, à medida que são feitas em proveito de todos e
que se identificam com a lei natural...” (795).
“Por
desgraça, essas leis (refere-se às que ainda existem) se dirigem mais a
castigar o mal feito que a extinguir a fonte”. (796).
Para terminar esta exposição de
conceitos sociológicos extraídos das obras fundamentais do Espiritismo e não
cansar mais a atenção do leitor, me contentarei em citar os parágrafos que
servem de corolário ao exposto e cujos conceitos são, para o caso que nos
ocupa, de valor inestimável:
“Se supomos
– diz – uma sociedade de homens bastante desinteressados e bondosos para viver
fraternalmente, entre eles não haverá privilégios nem direitos excepcionais,
pois de outro modo não existiria verdadeira fraternidade. Tratar a um
semelhante de irmão é tratá-lo de igual para igual; é desejar-lhe o quanto se
deseja para si, e em um povo de irmãos, a igualdade será a consequência de um
modo de construir como relação natural de seus sentimentos e se estabelecerá
por força das circunstâncias. Mas aqui – continua o mestre – nos encontramos
com o orgulho, que sempre quer dominar e ser o primeiro nas coisas e que só se
alimenta de privilégios e de exceções...”. (
Obras Póstumas,
Liberdade, Igualdade, Fraternidade).
“... É
possível a destruição do orgulho e do egoísmo? Dizemos sem sombra de dúvida que
sim, porque do contrário seria preciso anunciar um término à humanidade...”
(Idem).
“A aspiração
do homem por uma ordem melhor de coisas que a atual é um indício certo da possibilidade
de atingi-la. Aos homens amantes do progresso cabe, pois, ativar este movimento
pelo estudo e a prática dos meios que se supõe mais eficazes”. (Idem)
III
Como se vê, o Espiritismo não é uma
ideologia conservadora, adaptável aos interesses econômicos mesquinhos que
servem de fundamento ao atual regime social.
Nas citações que acabamos de fazer acham-se expressos, com admirável simplicidade,
os conceitos da nova Sociologia que deverá servir de base à sociedade do
porvir, para a qual tendem todos os homens de ideais sadios, amantes da verdade
e da justiça. Eis aqui a exposição sintética destes princípios emanados da
doutrina espiritista:
- Reconhecimento
do direito natural.
- Reconhecimento
da igualdade social.
- Reconhecimento
da igualdade econômica, proporcional às necessidades e aptidões de cada um.
- Reconhecimento
da igualdade de deveres na produção útil, seja no trabalho material ou intelectual.
- Distribuição
do trabalho social em concordância com as aptidões e gostos de cada um e liberdade
na escolha do trabalho, bem como na duração do tempo.
- Supressão
de todo castigo legal e implantação de novos métodos corretivos, em concordância
com o conceito espiritual da vida.
- Educação
moral fundada na justiça e no direito natural igual para todos.
- Respeito
mútuo, sem distinção de classe social, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não
como meros decretos institucionais, mas como direitos sociais, derivados da
justiça econômica
Se a tudo isto juntamos a igualdade
de direitos da mulher em relação ao homem: a liberdade de consciência e de ideias;
a proteção da sociedade para o livre desenvolvimento das faculdades e aptidões
dos indivíduos de ambos os sexos; a tolerância, sem tolher o desenvolvimento à
educação e à perseguição; a caridade, no sentido de amor, de piedade e de
sacrifício; a propensão por parte das forças dirigentes da sociedade, para que
o trabalho seja cada vez mais agradável, menos forçado, mais intelectual e,
acima de tudo, a certeza de nossa imortalidade, de nosso progresso indefinido,
que emana da doutrina espiritista e que estão expressos em suas obras fundamentais;
vemos que o Espiritismo, longe de ser uma tendência conservadora, é a mais
revolucionária, a mais humana e a mais espiritual de todas quantas
existem.
Ante esta perspectiva grandiosa que o
Espiritismo nos oferece para a sociedade do futuro, e que não é, como se
costuma dizer, uma concepção utópica, “produto de cérebro anarquizado”, como
poderíamos os espíritas permanecer indiferentes diante dos crimes sociais, da
exploração de uma classe dominante, que garante seu poderio e o monopólio da
riqueza social na razão da força, sobre a ignorância dos povos e o falso
ensinamento de uma moral interesseira? Como poderíamos concordar com esta ordem
social estabelecida sobre a desordem dirigida pelo império da força? Como
poderíamos contemplar a imoralidade, o vício, a injustiça, a exploração e o
roubo sociais — que se querem fazer passar por coisas muito justas, boas,
morais — sem manifestar nosso repúdio? Como poderíamos conviver com a
hipocrisia e a mentira se os princípios que sustentamos a elas se opõem? Como,
enfim, poderíamos nos conformar com a situação do regime atual criado sobre
privilégios iníquos, se o Espiritismo nos fala de uma sociedade melhor, de paz,
de amor, fraternidade e de justiça, e da possibilidade de realizá-la? Quem há
de realizá-la, admitida sua possibilidade, se não os homens que nela creem, por
seu esforço contínuo, com a prédica perseverante, com o propósito declarado à
paz do mundo, com a ação constante no impulso moralizador nessa direção e pelos
meios mais eficazes e convincentes?
Para o espírita, a sociedade humana é
um dinamismo espiritual que se move por impulsos de ideias e sentimentos no sentido
progressivo; mas como o progresso não se efetua em linha reta, senão como dizem
certos filósofos, em forma de espiral, tem seus aparentes decessos, que
correspondem ao final de cada civilização, caracterizados pela crise geral em
todas as ordens da vida, cuja civilização ao final da curvatura de seu ciclo
evolutivo, com o impulso das forças que a determina, dá nascimento a outras. E
assim sucessivamente, de ciclo em ciclo, a humanidade vai-se elevando para formas
sociais mais perfeitas, passando sempre pelas mesmas fases de nascimento,
apogeu, decadência e morte aparentes. Mas este impulso dinâmico social se deve
sempre a novas tendências ideológicas, às tendências individuais ou coletivas
que, pela lei da mesma evolução, tendem a separar-se das tendências gerais, ou
seja, das velhas ideologias conservadoras, arraigada aos interesses materiais
que se criaram na sociedade.
Eis o motivo pelo qual os homens mais
evoluídos moral e espiritualmente, os que formam parte das novas tendências ideológicas
e os que se sentem afinados com elas, “os homens amantes do progresso”, como
diz Kardec, são os que devem dar impulso a este novo ciclo da evolução humana,
porque suas ideologias são – o diremos – as novas células da sociedade, chamada
a fortalecer seu organismo em decadência e dar-lhe nova vitalidade.
É um alívio dizer que o Espiritismo se
encontra a uma altura muito superior às demais ideologias, porque não somente
crê na justiça, como a faz emanar de um Princípio eterno, justo e onisciente,
manancial de todas as virtudes e de todos os sentimentos que exaltam e
enobrecem o homem e, portanto, é capaz de infundir à sociedade essa nova
vitalidade de que carece, de imprimir-lhe novos rumos em direção a uma nova era
de paz, amor e justiça. E ao dizer o Espiritismo, entendo dizer os espíritas,
já que, como diz o Evangelho, ao que muito foi dado, muito será pedido.
Para chegar à realização mais rápida
desta finalidade social, os espíritas nos vemos impelidos, por força dos mesmos
acontecimentos que se desenvolvem no mundo neste momento transitório da
história, a intensificar nossa ação moralizadora e transformadora dos valores
sociais, ação construtiva e ao mesmo tempo destrutiva, está no sentido de
neutralizar a falsa educação, a moral interesseira e discordante, que se dá ao
homem desde sua infância e o ensina a cumprir deveres e a respeitar direitos
que não são senão disposições arbitrárias, que estão em conflito com a justiça
e com o direito natural e, por conseguinte, com os princípios morais do
Espiritismo. É uma educação que se inculca com o propósito de manter esta
sociedade de privilégios, fonte de ódios, de guerras, de roubos e imoralidades.
Uma ação destrutiva, enfim, no sentido de criticar e combater, franca e abertamente,
todas as injustiças, crimes e prerrogativas sociais, ensinando a não reconhecer
outras riquezas nem outros títulos de superioridade que aqueles que tenham sido
adquiridos com o esforço próprio e sem prejuízo de outrem. Uma ação construtiva
no sentido de ensinar a moral espírita em toda sua força, que se sobrepõe a
todas as ambições materiais, a todos os egoísmos e orgulhos - que formam o
fundamento do privilégio -, o amor, a igualdade e a fraternidade.
Os espíritas, que temos penetrado no sentido
evolutivo da vida, tanto individual como social, marchamos cheios de sadio
otimismo em direção a essa nova sociedade que se vislumbra, mas não como
simples espectadores, nem obrigados pela força dos acontecimentos – como muitos
supõem – mas como propulsores desse grande movimento social que se gera nas ideias
e se desenvolve no mundo factual, levando a tocha de nosso ideal a maior
altura, porque é mais capaz de iluminar a humanidade e conduzi-la com maior prudência
e menos sacrifício. Não queremos chegar a ela com as mãos sujas de sangue,
porque esse sangue é nosso próprio sangue e os delitos que combatemos são
também nossos próprios delitos. Por outro lado, ainda que em última instância a
violência fosse necessária, dada a resistência do egoísmo contra a justiça e o
direito – ela seria completamente estéril e de resultados negativos, não
estando a consciência dos povos suficientemente evoluída para afiançar o novo
regime sobre as bases da igualdade econômica e social que, como bem disse
Kardec, não poderia existir sem verdadeira fraternidade.
A revolução se realiza nas ideias e
nos sentimentos morais, sobre uma base espiritual e positiva, porque sem ela
não pode haver emancipação social nem justiça, aperfeiçoamento individual ou
coletivo.
Quando os homens se derem exata conta
do que são, para que vêm à Terra e da finalidade que perseguem como espíritos,
não como bestas insaciáveis e egoístas; quando, pelos ensinamentos do mundo
espiritual, se convençam do ínfimo valor das riquezas materiais se estas não
servem para aumentar as riquezas do espírito e satisfazer a todas as
necessidades da vida social, quando, enfim, estas e outras coisas que o Espiritismo
ensina penetrarem nas consciências obscurecidas por interesses mesquinhos da
vida material, então a fraternidade, o reinado da igualdade e da justiça será
um fato, não serão necessárias
revoluções sangrentas para impô-las.
Enquanto isso, cabe aos que temos
abraçado este ideal, aos que amam a verdade e a justiça, trabalhar assiduamente
para que esta finalidade social se realize, porque sua realização depende do
esforço e também do sacrifício dos que nela creem.
Fonte: Conceito Espírita de Sociologia – Manuel S.
Porteiro
Edição: PENSE - Pensamento Social Espírita - www.viasantos.com/pense
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