A História de Silas
Na noite
imediata, acompanhando o Assistente, eu e Hilário achamo-nos de novo na
residência de Luís. Os irmãos de Antônio Olímpio receberam-nos de bom grado.
Em larga
copa da fazenda, reunia-se a família a dois agregados, em repasto ligeiro.
Marcava o
relógio vinte e uma horas.
A fisionomia
do dono da casa era quase a mesma da véspera, não obstante a diferença que a
máscara física lhe impunha.
Enquanto
Adélia acariciava as crianças, entontecidas de sono, o marido comentava o
noticiário radiofônico, destacando tópicos alarmantes que assinalara nos
setores da economia. E, falando para os amigos assombrados, salientou as
dificuldades públicas, relacionou misérias imaginárias, criticou os políticos e
os administradores e referiu-se às pragas do café e da mandioca, detendo-se,
particularmente, sobre as epizootias.
Por fim, não
satisfeito em enunciar as calamidades da Terra, falou, inconsequente, quanto à
suposta ira do Céu, afirmando crer que o fim do mundo estava próximo e clamando
contra o egoísmo dos ricos, que agravava o infortúnio dos pobres.
Silenciosos
todos, ouvíamos-lhe a palavra, quando Leonel, mais confiado, dirigiu-se ao
Assistente,
observando:
– Estão
vendo? Este homem – e apontou Luís, cujo verbo dominava a pequenina assembleia
familiar – é o derrotismo em pessoa. Enxerga tudo em termos de cinza e lama,
ajuíza com firmeza sobre os desastres sociais e conhece as zonas mais tristes
da indigência coletiva; entretanto, não sabe desfazer-se de um só centavo dos milhões
que retém, a favor dos que sofrem nudez e fome... E, depois de um sorriso
irônico;
– Acreditam,
acaso, possa ele continuar merecendo a felicidade da permanência num corpo
carnal?
Silas
contemplou as personagens da cena doméstica, mostrando imensa piedade no
semblante amigo, e considerou:
– Leonel,
todas as suas observações apresentam lógica e verdade, à primeira vista.
Superficialmente, Luís é um exemplar consumado de pessimismo e de usura.
Todavia, no fundo, ele é um doente necessitado de compaixão. Há moléstias da
alma que arruínam a mente por tempo indeterminado. Quem seria ele, amparado por
influências outras?
Espiritualmente
abafado entre as visões da fortuna terrestre com que lhe assediamos o pensamento,
o infeliz perdeu o contato com os livros nobres e com as nobres companhias. Tem
a socorrê-lo apenas a religião domingueira dos crentes que se julgam exonerados
de qualquer obrigação para com a fé, contanto que participem do oficio de
adoração a Deus, no fim de cada semana. Quem poderia prever lhe as mudanças
benéficas, desde que pudesse receber outro tipo de assistência?
Clarindo e
Leonel registraram lhe as ponderações como se se vissem apunhalados no âmago,
tal a expressão de revolta que lhes assomou ao olhar coruscante.
– No
entanto, ele e o pai são nossos devedores... Roubaram-nos, assassinaram-nos...
– exclamou Leonel com a inflexão da criança
voluntariosa e inteligente que se vê contrariada em seus caprichos.
– E que
desejam vocês que eles façam? – acrescentou o Assistente, sem se perturbar.
– Hão de
pagar! . . . Pagar!... – bramiu Clarindo, cerrando os punhos.
Silas sorriu
e obtemperou
– Sim, pagar
é o verbo próprio. . . Contudo, como pode o devedor resgatar-se, quando o
credor lhe subtrai todas as possibilidades de solver os débitos?
Que a nós
mesmos cabe sanar os males de que somos autores, não padece qualquer dúvida...
Entretanto, se nos compete retificar hoje uma estrada que ontem desorganizamos,
como proceder se nos decepam agora as mãos? O próprio Cristo aconselhou: –
“Ajudai aos
vossos inimigos.”
Muitas
vezes, penso que semelhante afirmativa, corretamente interpretada, quer assim
dizer: ajudai aos vossos inimigos para que possam pagar as dívidas em que se
emaranharam, restaurando o equilíbrio da vida, no qual tanto eles quanto vós
sereis beneficiados pela paz.
Via-se que o
Assistente, com a simpatia conquistada na véspera e com a argumentação
despretensiosa e límpida, lograra inequívoca superioridade moral sobre o ânimo
dos obsessores de sentimento enrijecido. Ainda assim, Leonel perguntou a medo:
– Que
considerações são essas? será você algum padre disfarçado? intentará, porventura,
a nossa modificação?
– Engana-se,
meu amigo – informou o Assistente –; se algo procuro, em nossa comunhão fraterna,
é a minha própria renovação.
E talvez
porque longa pausa se fez sentir em nosso grupo, Silas continuou:
André Luiz
põe nos lábios de sua personagem uma síntese dos v. 27 e
28 do cap. 6
de Lucas, para ser mais facilmente compreendido por aqueles Espíritos cheios de
ódio, aos quais repugnaria o verbo "amar".
Eles se
rebelariam diante do texto completo. Seria inabilidade falar em "amar"
naquele momento; mas "ajudar" a pagar foi bem aceito, porque eles
queriam receber.
– Pela
sedução do dinheiro, também caí na última passagem pela Terra. A paixão da
posse governava-me todos os ideais... A fascinação pelo ouro tomou-me o ser de
tal modo que, apesar de ter recebido o título de médico numa universidade
venerável, fugi ao exercício da profissão para vigiar os movimentos de meu velho
pai, a fim de que nem ele mesmo viesse a dispor, com largueza, dos bens de
nossa casa. O apego às nossas propriedades e aos nossos haveres transformou-me
num réprobo do paraíso familiar, convertendo-me, ainda, num verdugo intratável,
naturalmente odiado por todos os que viviam em subalternidade no vasto círculo
de minha temporária dominação... Para amontoar moedas e multiplicar lucros
fáceis, comecei pela crueldade e acabei nas malhas do crime... Abominei a
amizade, desprezei os fracos e os pobres e, no temor de perder a fortuna cuja
posse total ambicionava, não hesitei adotar a delinquência como sócia infernal
de meu terrível caminho...
Ante as
palavras do Assistente, enorme surpresa me tomara de improviso. Estaria Silas
reportando-se à verdade crua ou se utilizava naquela hora de recursos extremos,
incriminando indevidamente a si próprio, para regenerar os carrascos que nos
ouviam?
De qualquer
modo, eu e Hilário havíamos prometido não lhe comprometer a tarefa e, por isso,
tacitamente, nos limitávamos a escutá-lo com atenção.
Sentindo,
decerto, que Leonel e Clarindo se mostravam um tanto comovidos, dando ensejo à
assimilação de pensamentos novos, Silas convidou-nos a todos à retirada do
ambiente.
Pretendia
dizer-nos algo de sua experiência – falou ele –, mas preferia conversar conosco
ante o altar abençoado da noite, a fim de que a sua memória pudesse evocar
tranquilamente os fatos que buscaria relatar.
Lá fora, as
constelações resplendiam, como lares pendentes da Criação, e o vento perfumado
corria, célere, como quem se propunha transportar-nos a oração ou a palavra
para a Glória do Céu. Incapaz de penetrar o verdadeiro sentido da inesperada atitude
que o Assistente vinha de assumir, notei-o efetivamente emocionado, qual se fixasse
os olhos da alma em painéis distantes. Clarindo e Leonel, naturalmente
dominados pela simpatia a se lhe irradiar do semblante, observavam-no,
submissos.
E Silas
começou em voz pausada:
– Tanto
quanto posso abranger com a minha memória presente, lembro-me de que, em minha
última viagem pelos domínios da carne, desde a meninice, me entreguei à paixão
pelo dinheiro, o que hoje me confere a certeza de que, por muitas e muitas
vezes, fui usurário terrível entre os homens da Terra. Hoje sei, por informações
de instrutores abnegados, que, como de outras ocasiões, renasci na derradeira
existência, num lar bafejado por grande fortuna, a fim de sofrer a tentação do
ouro farto e vencê-la, a golpes de vontade firme, na lavoura incessante do amor
fraterno, caindo, porém, lamentavelmente, por minha infelicidade. Era eu o
filho único de um homem probo que herdara dos avoengos consideráveis bens. Meu
pai era um advogado correto que, por excesso de conforto, não se dedicava aos
misteres da profissão, mas, profundamente estudioso, vivia rodeado de livros
raros, entre obrigações sociais, que, de alguma sorte, lhe subtraiam a personalidade
às cogitações da fé. Minha mãe, porém, era católica romana, de pensamento
fervoroso e digno, e, embora sem descer conosco a qualquer disputa na esfera
devocional, tentava incutir-nos o dever da beneficência. Recordo-me, com tardio
arrependimento, dos reiterados convites que nos dirigia, bondosa, para que lhe palmilhássemos
as tarefas de caridade cristã, convites esses que meu pai e eu recusávamos, sem
discrepância, encastelados em nossa irreverência enfatuada e risonha. Minha
genitora cedo percebeu que meu pobre espírito trazia consigo o azinhavre da
usura e, reconhecendo que lhe seria extremamente difícil colaborar na renovação
íntima de meu pai, homem já feito e desde a infância habituado à dominação
financeira, concentrava em mim seus propósitos de elevação. Para isso, buscou
estimular-me ao gosto pelos estudos de medicina, alegando que, ao lado do
sofrimento humano, poderia eu encontrar as melhores oportunidades de auxílio ao
próximo, tornando-me agradável a Deus, ainda mesmo que não me fosse possível
entesourar os recursos da fé. Intimamente eu escarnecia das sagradas esperanças
de quem me era a criatura mais cara ao espírito; contudo, sem poder resistir-lhe
ao cerco afetivo, consagrei-me à carreira médica, muito mais interessado em
explorar os enfermos ricos, cujos agravos do corpo, indiscutivelmente, me
facultariam amplas vantagens materiais. Entretanto, em vésperas da vitória
estudantil esperada, minha mãe, relativamente moça, despediu-se da experiência
física, vitimada por um acidente de angina. Nossa dor foi enorme. Recebi meu
diploma de medicina, qual se me fora ele detestada recordação, e, não obstante
os estímulos da bondade paterna, não cheguei a ingressar na prática da
profissão conquistada.
Recolhi-me à
intimidade doméstica, de que me ausentava tão-somente para as estações de entretenimento
e repouso, então mais que nunca chafurdado na sovinice, porquanto acompanhei o
inventário de minha mãe, com vigilância tão rigorosa que as minhas estranhas
atitudes chegaram a surpreender meu próprio pai, egoísta e displicente, mas
nunca avarento quanto eu. Compreendi que a fortuna herdada me situava, para meu
infortúnio moral, a cavaleiro de qualquer necessidade da vida física, por
largos anos, desde que não me confiasse à dissipação... Ainda assim, quando vi
meu genitor inclinado às segundas núpcias, quase aos sessenta de idade, fiz
quanto pude, indiretamente, para dissuadi-lo, afastando-o de tal intento. Ele,
todavia, era um homem resoluto nas decisões e desposou Aída, uma jovem da minha
idade, que mal se avizinhava dos trinta anos... Recebi a madrasta como intrusa
em nosso campo doméstico, e, tomando-a por aventureira comum, à caça de fortuna
fácil, jurei vingar-me. Apesar das carinhosas requisições do casal e não
obstante o tratamento gentil que a pobre moça me dispensava, exibia sempre um
pretexto para fugir-lhe à convivência. O novo matrimônio, no entanto, passou a
exigir do esposo mais dilatados sacrifícios no mundo social de que Aída não
pretendia afastar-se, e foi assim que, ao término de alguns meses, meu genitor
era obrigado a procurar o socorro médico, recolhendo-se, então, a necessário
repouso. Acompanhava-lhe a decadência orgânica, tomado de vivas apreensões. Não
era a saúde paterna que me feria a imaginação, mas sim a extensa reserva
financeira de nossa casa.
Na hipótese
do súbito falecimento do homem que me trouxera à existência, de modo algum me
resignaria a partilhar a herança com a mulher que, aos meus olhos,
indebitamente ocupava o espaço de minha mãe.
O Assistente
fez longa pausa, enquanto lhe fixávamos o semblante melancólico. De mim mesmo,
atônito, diante do que me era dado ouvir, indagava, no intimo, se tudo aquilo
de fato se passara... Fora Silas realmente o homem a quem se reportava ou
compunha ele aquela história para alterar o ânimo dos perseguidores?
Contudo, não
me foi possível desfechar qualquer interrogação, porquanto o nosso amigo, como
que desejoso de castigar-se com a dolorosa confissão, prosseguiu,
pormenorizando:
– Passei a
arquitetar planos delituosos, quanto à melhor maneira de alijar Aída de
qualquer possibilidade de ingresso futuro ao nosso patrimônio, sem melindrar meu
pai doente
... E nos
projetos criminosos que me visitavam a cabeça, a própria morte da madrasta
comparecia como solução. Entretanto, como suprimi-la sem causar maior
sofrimento ao enfermo que eu desejava conservar?... Não seria aconselhável desmoralizá-la,
antes de tudo, aos olhos dele, para que não padecesse qualquer saudade da
mulher, condenada por mim à desvalia? Tramava no silêncio e na sombra, quando a
ocasião esperada veio ao meu encontro... Convidado a comparecer com a esposa
numa festividade pública, meu pai chamou-me
e insistiu para que eu acompanhasse Aída, representando-lhe a autoridade . . .
Pela primeira vez, acedi com prazer...
Pretendia
conhecer-lhe agora, de mais perto, as afeições... Funestos propósitos
nasciam-me no crânio... Desse modo, durante alegre ágape, tomei contato com
Armando, primo de minha madrasta e que a cortejara em solteira. Armando era um
rapaz pouco mais velho que eu, perdulário e fanfarrão, que dividia o tempo
entre mulheres e taças espumantes, a quem contrariamente aos meus hábitos,
ofereci premeditada comunhão afetiva... Tanto quanto possível, dominando
moralmente o ânimo de meu pai, desde então o associei ao nosso campo doméstico,
favorecendo lhe o mais amplo retorno à intimidade com a criatura de quem se havia
enamorado, anos antes. A praia, o teatro, o cinema, bem como passeios de
variados matizes, eram agora os pontos costumeiros de nossa presença, nos quais
intencionalmente eu atirava os dois primos nos braços um do outro... Aída não
me percebeu a manobra e, embora resistisse, por mais de um ano, à galanteria do
companheiro, acabou por ceder à constante ofensiva dele... Fingi desconhecer-lhes
as relações até que eu pudesse conduzir meu pai ao testemunho direto dos
acontecimentos... Inventava jogos e distrações para reter o sedutor em nossa
casa... Captei lhe a confiança absoluta, de modo a usá-lo como peça importante
em meu criminoso ardil e, certa noite, em que, cauteloso, aparentei completa
ausência de nosso templo familiar, sabendo os amantes segregados em determinado
aposento contíguo ao meu, procurei meu pai em sua dependência de enfermo e,
mascarando-me com intensa dignidade ofendida, chamei-o a brios, numa exposição sintética
dos fatos...
Lívido e
trêmulo, o doente exigiu provas e nada mais fiz que conduzi-lo, cambaleante,
até à porta do quarto, cujo fecho eu próprio deixara enfraquecido... Bastou um
empurrão mais forte e meu genitor, desolado, encontrou o flagrante que eu
desejava... Armando, cínico, não obstante o desapontamento, afastou-se, lépido,
ciente de que não poderia esperar qualquer golpe grave de um sexagenário abatido...
Minha madrasta, porém, profundamente ferida em seu amor próprio, dirigiu ao
velho esposo acusações humilhantes, procurando os seus aposentos particulares,
numa explosão de amargura. Completando a obra terrível a que me devotara,
mostrei-me mais carinhoso para com o enfermo, intimamente aniquilado... Duas
semanas arrastaram-se pesadas para a nossa equipe familiar... Enquanto Aí da
ocupava o leito, assistida por dois médicos de nossa confiança, que nem de
longe nos conheciam a tragédia oculta, afagava meu pai com lamentações e
sugestões indiretas para que os bens de nossa casa fossem, na maioria,
guardados em meu nome, já que o segundo matrimônio não poderia desfazer-se,
perante as autoridades legais. Prosseguia em minha faina delituosa, quando
minha madrasta apareceu morta... Os clínicos de nossa amizade positivaram um
envenenamento fulminante e, constrangidos, notificaram a meu pai tratar-se de
um suicídio, decerto motivado pela insofreável neurastenia de que a doente se
via objeto. Meu genitor estava mais sombrio nos aparatosos funerais, contudo,
em meus destruidores propósitos, regozijei-me... Agora, sim... a fortuna total
de nossa casa passaria a pertencer-me... Minha satânica alegria, porém, durou
muito pouco... Desde a morte da segunda mulher, meu pai acamou-se para não mais
se erguer... Debalde, médicos e padres amigos procuraram oferecer-lhe melhoras
e consolações... Ao fim de dois meses, meu pai, que nunca mais sorriu, entrou
em dolorosa agonia, na qual, através de confidência entrecortada de lágrimas,
me confessou haver envenenado Aída, administrando-lhe violento tóxico no
calmante habitual. Isso, no entanto – assegurava-me vencido –, impunha-lhe
também a morte, de vez que não conseguia perdoar a si mesmo, passando a carregar
consigo um fardo de remorso constante e intolerável...
Pela
primeira vez, minha consciência doeu fundo. O apego aos bens da carne
arrasava-me a vida... O velho querido morreu nos meus braços, crendo que os meus
soluços de arrependimento fossem pranto de amor. Deixando-lhe o corpo fatigado
na terra fria, tornei a nossa casa solarenga, sentindo-me o mais infortunado
dos seres... O ouro integral do mundo não me garantiria agora o mais leve
consolo. Achava-me sozinho, sozinho e... infinitamente desgraçado. Todos os
recantos e pertences de nossa habitação falavam-me de crime e remorso...
Muitas
vezes, a sombra noturna pareceu-me povoada de fantasmas horripilantes a
escarnecerem de minha dor, e, em meio da malta de insensíveis demônios, a
investirem contra mim, tinha a ideia de escutar a voz inconfundível de meu pai,
clamando para minha alma:
– “Meu filho! meu filho! recua enquanto é
tempo.”
Fiz-me
arredio, desconfiado... Em pavorosa crise moral, demandei à Europa, em longa
viagem de recreio, mas o encanto das grandes cidades do Velho Mundo não
conseguiu aliviar-me as chagas interiores. Em toda a parte, a refeição mais
nobre amargava-me na boca e os mais belos espetáculos artísticos deixavam-me
apenas ansiedade e desolação. Regressei ao
Brasil, mas
não tive coragem de retomar a intimidade com a nossa antiga residência.
Amparado pela afeição de velho amigo de meu genitor, aceitei-lhe o acolhimento,
por alguns dias, até que minha saúde orgânica me permitisse pensar numa
transformação radical da existência... Embalado pelo carinho familiar daquele
amigo, deixei que longos meses passassem, tentando imerecida fuga mental... até
que, numa noite inolvidável para mim, na qual minha gastrologia se transformara
num azorrague de dor, tomei de um frasco de arsênico na adega de meu anfitrião,
acreditando usado bicarbonato de sódio que ali deixara na véspera, e o veneno
expulsou-me do corpo, impondo-me sofrimentos terríveis... Qual acontecera à
minha madrasta, que desencarnara em padecimentos atrozes, eu também passei pela
morte em condições análogas... E os amigos que me asilavam no templo doméstico,
desconhecendo o equívoco de que eu fora vítima, admitiram, sem qualquer sombra
de dúvida, que eu buscara no suicídio a extinção das penas morais que me
castigavam a alma de “moço rico e entediado da vida”, segundo a versão a que
deram curso. Silas relanceou o olhar tristonho sobre nós, como quem procurava o
efeito de suas palavras, e prosseguiu:
– Isso,
porém, não bastou para ressarcir minhas tremendas culpas... Dementado, depois
do sepulcro, atravessei meses cruéis de terror e desequilíbrio, entre os
quadros vivos a se me exteriorizarem da mente algemada às criações de si
própria, até que fui socorrido por amigos de meu pai, que se achava igualmente
a caminho da sua recuperação, e, unindo-me a ele, passei a empenhar todas as
minhas energias na preparação do futuro...
Transcorridos
alguns instantes de pesado silêncio, concluiu:
– Como veem,
a fascinação pelo ouro foi o motivo de minha perda. Tenho necessidade de grande
esforço no bem e de fé vigorosa para não cair outra vez, porquanto é indispensável
me consagre a nova experiência entre os homens...
Leonel e
Clarindo não se achavam mais surpreendidos que eu e Hilário, habituados a
encontrar, em Silas, um admirável companheiro, aparentemente sem aflição e sem
problemas.
Foi Leonel
quem rompeu a pausa, perguntando ao Assistente que emudecera, qual se fora subjugado
pela força das próprias reminiscências:
– Voltará,
então, para a carne, assim tão breve?
– Oh! quem
me dera a ventura de regressar tão apressadamente quanto possível!...
– suspirou o
chefe de nossa expedição, algo ansioso. – O devedor está inelutavelmente ligado
ao interesse dos credores... Assim, antes de tudo, é imprescindível venha a
encontrar minha madrasta, no vasto país de sombra em que nós achamos, para
encetar a difícil tarefa de minha liberação moral.
– Como
assim? – perguntei, emocionado.
– Sim, meu
amigo – falou Silas, abraçando-me –, meu caso não aproveita simplesmente a Clarindo
e Leonel, que procuram a justiça pelas próprias mãos, o que, muitas vezes,
apenas significa violência e crueldade, mas também a Hilário e a você que estudam
presentemente a lei do carma, ou seja, da ação e reação...
Aqui somos
impelidos a recordar novamente a lição do Senhor: “ajudai aos vossos inimigos”,
porque, sem que eu mesmo auxilie a mulher em cujo coração criei uma importante
adversária de minha paz, não posso receber-lhe o auxílio fraterno, sem o qual não
reconquistarei minha serenidade... Vali-me da fraqueza de
Aída para
arrojá-la ao despenhadeiro da perturbação, fazendo-a mais frágil do que já era
em si mesma... Agora, eu e meu pai, que lhe complicamos o caminho, somos
naturalmente constrangidos a buscá-la, soerguê-la, ampará-la e restituir-lhe o
equilíbrio relativo na Terra, para que venhamos a solver, pelo menos em parte,
a nossa imensa dívida...
– Seu pai?
referiu-se a seu pai? – inquiriu Hilário, afoito.
– Sim, como
não? – retrucou o Assistente – meu pai e eu, assistidos por minha mãe, hoje
nossa benfeitora nas Esferas Mais Altas, estamos associados no mesmo
empreendimento – nossa própria regeneração moral, em busca do levantamento de
Aída –, sem o que não conseguiremos desintegrar o visco envenenado do remorso
que nos aprisiona o campo mental nas faixas inferiores da vida terrestre. É
assim que nos cabe reencontrá-la, a benefício de nós mesmos... Tão logo a
Divina Misericórdia nos permita semelhante felicidade, meu genitor, envolvido
no amor e na renúncia de minha mãe que, com ele, retornará às lides da carne,
vestir-se-á de nova expressão corpórea no plano das formas físicas e, ambos, na
mocidade terrena, retomando os laços humanos do casamento, recolher-nos-ão por
filhos abençoados... Aída e eu seremos irmãos nas teias consanguíneas...
Consoante nossas aspirações que o Céu protegerá, à face da Magnanimidade
Divina, serei novamente médico no futuro, ao preço de imenso esforço, para
consagrar-me à beneficência, nela recuperando minhas valiosas oportunidades perdidas...
Minha madrasta, que, por certo, viverá sofrendo deplorável intoxicação da alma,
nos tenebrosos abismos, será socorrida em momento oportuno e, não obstante o
tempo longo de assistência que nos reclamará neste plano, em necessário
refazimento, sem dúvida renascerá em franzino corpo físico, junto de nós, de
maneira a sanar as difíceis psicoses que estará adquirindo sob o domínio das
trevas, psicoses que lhe marcarão a existência na carne, sob a forma de
estranhas enfermidades mentais... Ser-lhe-ei, assim, não apenas o irmão do lar,
mas também o enfermeiro e o amigo, o companheiro e o médico, pagando em
sacrifício e boa-vontade, afeto e carinho, o equilíbrio e a felicidade que lhe
furtei...
A confissão
do Assistente valia por todo um compêndio vivo de experiências preciosas, e,
talvez por isso mesmo, entráramos todos em grave meditação. Hilário, contudo,
como quem não desejava perder o fio do ensinamento, dirigiu-se ao nosso amigo, considerando:
– Meu caro,
disse você estar aguardando, em comunhão com o genitor, a alegria de reencontrar
a madrasta... Como entender-lhe a alegação? porventura, com o seu grau de
conhecimento, sofre alguma dificuldade para saber-lhe a moradia?
– Sim,
sim... – confirmou o Assistente, tristonho.
– E os
benfeitores espirituais que atualmente lhes guiam a senda? não conhecerão eles
o paradeiro dela, orientando-lhes os movimentos no objetivo a alcançar?
–
Inegavelmente – ponderou Silas, bondoso – nossos instrutores não padecem a
ignorância que me caracteriza no assunto...
Entretanto,
qual ocorre entre os homens, também aqui o professor não pode chamar a si os
deveres do aluno, sob pena de subtrair-lhe o mérito da lição. Na Terra, por
muito nos amem, nossas mães não nos substituem no cárcere, quando devamos
expiar algum crime, e nossos melhores amigos não podem avocar para si, em nome
da amizade, o direito de sofrer a mutilação que a nossa imprudência nos tenha
infligido ao próprio corpo. Sem dúvida as bênçãos de amor dos nossos dirigentes
hão trazido à minha alma inapreciáveis recursos... Conferem-me luz interior
para que eu sinta e reconheça minhas fraquezas e auxiliam-me a renovação, a fim
de que eu possa demandar, com mais decisão e facilidade, a meta que me proponho
atingir... mas, em verdade, o serviço de meu próprio resgate é pessoal e
intransferível...
Leonel e
Clarindo ouviam-no, boquiabertos.
Falando de
si mesmo, o Assistente, sem lhes ferir o amor próprio, trabalhava
indiretamente, para que se entregassem ao reajuste. E, pela expressão do olhar,
via-se que os dois verdugos revelavam agora admirável mudança íntima.
Hilário
refletiu alguns instantes e voltou a considerar:
– Mas todo
esse drama deve estar vinculado a causas do pretérito...
– Sim,
decerto – confirmou o Assistente –, mas, em nossa atormentada região, não há
tempo mental para qualquer prodígio da memória. Achamo-nos presos à recordação
das causas próximas de nossas angústias, dificultando-se nos a possibilidade de
penetrar o domínio das causas remotas, porquanto a situação de nosso espírito é
a de um doente grave, necessitado de intervenção urgente, a favor do reajuste.
O inferno, a exprimir-se nas zonas inferiores da Terra, está repleto de almas
que, dilaceradas e sofredoras, se levantam, clamando pelo socorro da
Providência Divina contra os males que geraram para si mesmas, e a Providência
Divina lhes
permite a ventura de trabalhar, com os dardos da culpa e do arrependimento a
lhes castigarem o coração, em benefício das suas vítimas e dos irmãos, cujas
faltas se afinem com os delitos que cometeram, para que se rearmonizem, tão
apressadamente quanto possível, com o Infinito Amor e com a Perfeita Justiça da
Lei... Paguemos nossas dívidas, que respondem por sombras espessas em nossas
almas, e o espelho de nossa mente, onde estivermos, refletirá a luz do Céu, a
pátria da Divina Lembrança!...
Compreendemos
que Silas auxiliava Clarindo e Leonel, identificando-os como irmãos de luta e
aprendizado, no que, indiscutivelmente, ampliaria os próprios méritos.
Muitas
inquirições explodiam, em pensamento, no meu acanhado mundo íntimo... Quem lhe
seria o pai amigo? onde viveria sua abnegada genitora? esperava despender,
ainda, longo tempo na procura da madrasta infeliz?... Entretanto, a grandeza
espiritual do Assistente não nos favoreceria qualquer pergunta indiscreta.
Apenas tive
coragem para considerar, respeitoso:
– Oh! meu
Deus, quanto tempo gastamos para refazer, às vezes, a inconsequência de um
simples minuto!
– Você tem
razão, André – comentou Silas, generoso –, a lei é de ação e reação... A ação
do mal pode ser rápida, mas ninguém sabe quanto tempo exigirá o serviço da
reação, indispensável ao restabelecimento da harmonia soberana da vida,
quebrada por nossas atitudes contrárias ao bem...
E, sorrindo:
– Por isso
mesmo, recomendava
Jesus às
criaturas encarnadas:
–
“reconcilia-te depressa com o teu adversário, enquanto te encontras a caminho
com ele...
” É que
Espírito algum penetrará o Céu sem a paz de consciência, e, se é mais fácil
apagar as nossas querelas e retificar nossos desacertos, enquanto estagiamos no
mesmo caminho palmilhado por nossas vítimas na Terra, é muito difícil
providenciar a solução de nossos criminosos enigmas, quando já nos achamos
mergulhados nos nevoeiros infernais.
A ponderação
era cabível e justa. Não nos foi possível, porém, prosseguir a conversa.
Leonel, cuja impassibilidade reconhecíamos, com grande surpresa para nós tinha
os olhos umedecidos...
Silas ergueu
os olhos para o Alto, agradecendo a bênção da transformação que se esboçava e
recolheu-o em seus braços. O desditoso irmão de Clarindo queria falar...
Percebemos que tencionava referir-se à morte de Alzira, no lago, mas o
Assistente prometeu-lhe que voltaríamos na noite seguinte. Logo após,
voltávamos, mas nem Hilário nem eu nos animamos a conversar com o denodado
companheiro, que entrara, melancólico, em expressivo silêncio.
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