KARDEC, RACISMO E ESPIRITISMO - UMA REFLEXÃO
Não fales e nem escrevas
Algo que fira ou degrade;
Racismo é uma chaga aberta
No corpo da Humanidade
(Cornélio Pires) ([1])
O racismo([2])
é um tema pouco abordado nas hostes doutrinárias. A bibliografia é escassa. Os
escritores e estudiosos espíritas brasileiros ainda não se debruçaram com maior
profundidade sobre o assunto. Para alguns, as poucas análises sobre a questão
do segregacionismo e da escravidão do negro, no Espiritismo deixam transparecer
as influências da teoria arianista ([3]), da visão positivista e idealista da
história, desconsiderando os fatos nos seus relativismos e contradições.
Para a
investigação kardequiana, a respeito do negro, torna necessário ser considerado
o contexto histórico em que foi discutida a temática. Incidiria em erro, sob o
ponto de vista histórico, considerar Allan Kardec contaminado de preconceitos
ou de índole racista. Essa palavra detém uma carga semântica muito forte,
inadequada para definir os ideais do mestre lionês. Não há nenhum indício de
que ele tenha discriminado algum indivíduo ou grupo de origem negra ou
quaisquer indivíduos, sejam no movimento espírita ou fora dele. A jornalista
Dora
Incontri, com mestrado e doutorado em Educação, pela USP, em seu livro Para
entender Kardec, nos trás um fato interessante que muito bem nos dará uma ideia
de quem era o senhor Rivail. Vejamos: “É bom lembrar que, na Sociedade de
Estudos Espíritas de Paris, havia um Camille Flammarion, astrônomo, e um
calceteiro (operário braçal que fazia as calçadas de Paris, de quem Kardec
noticia a morte) e ambos eram membros da Sociedade”.([4])
Os
contraditores de Kardec se valem de textos insertos na Revista Espírita e principalmente
em Obras Póstumas, 1ª parte, capítulo da "Teoria da Beleza". A rigor
não consideramos essa teoria um ponto doutrinário e muito menos consta das
Obras Básicas.
Trata-se de
uma pesquisa de Kardec que não chegou a publicá-la. Veio a público após o seu desencarne,
quando algumas anotações deixadas foram reunidas no livro citado, donde se infere
que aquele pensamento ainda não estava perfeitamente consolidado. Por justeza
de razões importa lembrar que Kardec não compilou o Espiritismo em seu próprio
nome. Ele atribuía a Doutrina como sendo dos Espíritos. Destarte, urge se faça
distinção entre o que revelaram os Benfeitores Espirituais sob o princípio do
consenso universal dos Espíritos e o que escreveu e pensava particularmente
Kardec, inclusive na Revista Espírita.
No bojo da
literatura basilar da Terceira Revelação, o Codificador ressalta que, “na reencarnação
desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar
a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre
ou escravo, homem ou mulher. . Se, pois, a reencarnação funda numa lei da
Natureza o princípio da 2 fraternidade universal, também funda na mesma lei o
da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade.”([5])
Ante os ditames da pluralidade das existências, ainda segundo Kardec
“enfraquecem-se os preconceitos de raça, os povos entram a considerar-se membros
de uma grande família.”([6])Como se observa, ideias essas que descaracterizam radicalmente
um Kardec preconceituoso. (grifei)
Entretanto,
apesar da atitude (para alguns preconceituosos) atribuída a Kardec em relação
ao negro, fruto do contexto em que viveu (repetimos) sobre discriminação e preconceito
a determinada etnia, sua obra sai indene de todas as críticas no sentido ético.
Até porque para abordagem do tema é imprescindível contextualizá-lo de acordo
com teorias de superioridade racial muito em voga na época. A frenologia, por
exemplo, advogava uma relação entre a inteligência e a força dos instintos em
um indivíduo com suas proporções cranianas. Uma espécie de “desdobramento”
pseudocientífico da fisiognomonia. Num artigo na
Revista
Espírita de abril de 1862, “Frenologia espiritualista e espírita -
Perfectibilidade da raça negra”, Kardec faz uma espécie de releitura dessa
“ciência” com um enfoque espiritualista, demonstrando que o “atraso” dos negros
não se deveria a causas biológicas, mas por seus espíritos encarnados ainda
serem relativamente jovens. ([7])
Indagamos:
existem povos mais adiantados que outros? É possível desconhecer a discrepância
entre silvícolas e citadinos? Se não é a diferença da evolução espiritual, o
que os torna desiguais, então? É evidente que podemos adequar as terminologias
para culturas “complexas ou simples” no lugar de “avançado ou atrasados”, o que
na essência não altera a situação de ambos. Sabemos também [isso é
incontestável] que a antropologia e a sociologia surgem eurocêntricas. E a
antropologia foi uma espécie de sociologia criada para estudar os povos
primitivos. ([8]) Contudo, a Doutrina Espírita tem mais amplitude do que toda
essa questão. Para nós “não há muitas espécies de homens, há tão somente cujos
espíritos estão mais ou menos atrasado, porém, todos suscetíveis de progredir
pela reencarnação. Não é este princípio mais conforme à justiça de Deus?”( [9])·
No livro
Renúncia, monumental obra da literatura mediúnica, identificamos trecho que nos
chamou a atenção para reflexão sobre o assunto. Robbie, filho de escravos e
irmão adotivo de Alcione, ao desencarnar disse-lhe “desde que mandei os gendarmes
([10]) libertar o cocheiro, por entender que me cabia a culpa (...) sinto que
não tenho mais a pele negra, que tenho a mão e a perna curadas (...) veja
Alcione (...) e esta lhe explica: São estas as provas redentoras, meu querido
Robbie! Deus te restitui a saúde da alma, por te considerar novamente digno.” ([11])(grifei)
Dá para imaginar o Espírito Alcíone racista...?
E por que
teriam os negros sofridos tanto com a escravidão? Segundo Humberto de Campos os
escravos seriam “os antigos batalhadores das cruzadas, senhores feudais da
Idade Média, padres e inquisidores, espíritos rebeldes e revoltados, perdidos
nos caminhos cheios da treva das suas consciências polutas”.([12])
A concepção
de que o homem possa encarnar na condição de branco, negro, mulato ou 3 índio,
estabelece uma ruptura com o preconceito e a discriminação raciais. Não
esqueçamos, porém, que na Grã-Bretanha, ainda hoje, muitos adeptos do
Neo-espiritualismo rejeitam a tese da reencarnação, por não admitirem a
possibilidade de terem tido encarnações em posições inferiores quanto à raça e
à condição social. Com essa visão, um Espírito, reencarnado num corpo de origem
negra, estará sujeito à discriminação e isso lhe será uma condição, uma
contingência evolutiva a ser superada. Para uns pode ser uma expiação, para outros
uma missão.
Com os
princípios espíritas se “apaga naturalmente toda a distinção estabelecida entre
os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre as quais o orgulho
fundou castas e os estúpidos preconceitos de cor”. ([13]) Como se observa, uma
doutrina libertária, como o Espiritismo, não compactua, sob quaisquer
pretextos, com nenhuma ideologia que vise a discriminação étnica entre os
grupos sociais.
A verdade é
que nos grandes debates de cunho sociológico, antropológico, filosófico, psicológico
etc., o Espiritismo provocará a maior revolução histórica no pensamento humano,
conforme está inscrito nas questões 798 e 799 de O Livro dos Espíritos,
sobretudo, quando ocupar o lugar que lhe é devido na cultura e conhecimento
humanos, pois seus preceitos morais advertirão aos homens a urgente
solidariedade que os há de unir como irmãos, apontando, por sua vez, que o
progresso intelecto-moral na vida de todos os Espíritos é lei universal,
tomando, por modelo, Jesus, que ante os olhos do homem, é o maior arquétipo da perfeição
que um Espírito pode alcançar.[14]
Jorge Hessen
Bibliografia Consultada:
[1] Xavier, Francisco Cândido. Caminhos da Vida, Ditada pelo
Espírito Cornélio Pires,
São Paulo: Ed. CEU, 1996.
[2] O racismo, segundo a acepção do “Novo Dicionário
Aurélio” é “a doutrina que sustenta a superioridade de certas raças”. O Conde
de Gobineau foi o principal teórico das teorias racistas. Sua obra, “Ensaio
Sobre a Desigualdade das Raças Humanas” (1855), lançou as bases da teoria
arianista, que considera a raça branca como a única pura e superior às demais,
tomada como fundamento filosófico pelos nazistas, adeptos do pan-germanismo.
[3] Entre os teóricos do racismo alemão, dizia-se dos
europeus de raça supostamente pura, descendentes dos árias.
[4] Incontri, Dora. Para Entender Kardec, Grandes Questões,
São Paulo: Publicações Lachâtre, 2001
[5] Kardec, Allan. A Gênese, Rio de Janeiro: Editora FEB,
2002, pág. 31.
[6] Idem págs. 415-416
[7] Kardec, Allan. Revista Espírita de abril de 1862.
[8] Primitivo era todo aquele povo que não havia chegado ao
grau de cultura e tecnologia do europeu. Sem dúvida que era uma visão do
europeu da época, que considerava os negros e os latinos selvagens.
[9] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, texto escrito por
Allan Kardec, e Constitui o Capítulo V item 6º, Rio de Janeiro: Editora FEB, 2014
[10] Soldado da força incumbida de velar pela segurança e
ordem pública, na França.
[11] Xavier, Francisco Cândido. Renúncia, 7 ª ed. Ditado
pelo Espírito Emmanuel, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1973, pg 412.
[12] Xavier, Francisco Cândido. Brasil, Coração do Mundo
Pátria do Evangelho, Ditado pelo Espírito Humberto de Campos, Rio de Janeiro:
Ed. FEB, 1980.
[13] Kardec, Allan. Revista Espírita de abril de 1861
297-298).
[14] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro:
Editora FEB, 2003, parte 3ª, q.798 e 799, cap. VIII item VI – Influência do
Espiritismo no Progresso.
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